HELENA PETROVNA BLAVATSKY
(1831-1891)
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Helena Blavatsky trouxe para o Ocidente ensinamentos de Buddha até então mantidos reservados mesmo para os budistas do Oriente. O estudioso americano David Reigle, em seu livro Blavatsky’s Secret Books, acredita ter localizado algumas das fontes dos ensinamentos divulgados por Blavatsky e aponta que essas fontes também foram utilizadas por escolas budistas que surgiram ao longo dos séculos, como a Escola Yogacara e a Escola Jonang.
Blavatsky afirma que sua obra A Doutrina Secreta foi baseada em livros reservados chamados Livros de Kiu-te, que são uma parte do cânone budista tibetano. O cânone budista é composto por 1.707 obras — 1.083 públicas e 624 secretas —, que são divididas em duas coleções: o Kanjur (bkha-hgyur), os ensinamentos atribuídos a Buddha, e o Tanjur (bstan-hgyur), os comentários escritos ao longo dos séculos. O Kanjur, por sua vez, é dividido em dois tipos: os discursos, ou sutras (mdo-sde, em tibetano), e os tantras budistas (rgyud-sde), que são considerados os ensinamentos mais elevados de Buddha. Segundo Reigle, a divisão rgyud-sde, foi transliterada por Blavatsky como “Kiu-te”, uma transliteração fonética, visto que naquela época não havia um padrão de transliteração como existe hoje.
A Doutrina Secreta é uma tradução, com explicações da autora, de passagens do chamado Livro de Dzyan. O Livro de Dzyan, por sua vez, “é o primeiro volume dos Comentários aos sete tomos secretos de Kiu-te e um glossário das obras exotéricas do mesmo nome”[1]. Alguns desses textos são relativamente recentes, enquanto alguns são antiquíssimos[2]. A primeira parte da divisão Gyut (rgyud-sde) é chamada Kalachakra e, segundo Blavatsky, é a “obra mais importante da divisão Gyut [(D)gyut](conhecimento místico)] do Kanjur”.[3] Ainda segundo Reigle, as estâncias do Livro de Dzyan podem ser um trecho do texto-raiz do sistema Kalachakra, o Mulakalachakra Tantra[4], do qual é conhecido somente uma versão reduzida feita por Manju Yashas, no séc. I a.C., e o famoso comentário feito por seu discípulo Pundarika, chamado Vimalaprabha. Reigle afirma que o ensinamento Kalachakra é conhecido como o “Ensinamento de Shambhala”. Segundo ele, “Shambhala é também considerada, na literatura teosófica, como a fonte do Ensinamento da Sabedoria Eterna, do qual é a Doutrina Secreta é uma parte direta”[5].
Outra obra de Blavatsky, A Voz do Silêncio, “faz parte da mesma série da qual se extraíram as ‘Estâncias’ do Livro de Dzyan, em que se baseia a Doutrina Secreta”[6]. Trata-se de uma tradução de três dos 90 textos que compõem o Livro dos Preceitos de Ouro. “Os preceitos originais são preservados nos templos anexos aos centros onde se acham estabelecidas as escolas “contemplativas”, ou Mahayana (Yogacharya)”[7].
Em relação à Escola Yogacharya, ou Yogacara[8], como se escreve atualmente, escola budista do séc. IV, cujos principais mestres são Arya Maitreya e Arya Asanga, Blavatsky afirmou a Alfred Sinnet ter utilizado também um texto reservado de Maitreya: “Terminei um extenso capítulo introdutório, ou Preâmbulo, Prólogo, chamem-no como quiserem, apenas para mostrar ao leitor que o texto, tal qual se desenvolve, iniciando-se cada seção com uma página traduzida do Livro de Dzyan e do Livro Secreto do “Maitreya Buddha” Champai chhos Nga (em prosa, não os cinco livros em verso conhecidos, que são um subterfúgio) não é uma ficção”.[9] Esse texto, conforme acredita Reigle, pode ser um original reservado em prosa de um texto em verso conhecido como Ratnagotravibhanga, ou Uttaratantra Shastra.
Esse texto de Maitreya enfoca a existência de uma natureza última de todos os fenômenos, chamada por Maitreya de dhatu[10], ou elemento. Aquilo que Maitreya expõe como sendo o dhatu corresponde à primeira das três proposições fundamentais de A Doutrina Secreta: “Um princípio onipresente, eterno, sem limites e imutável, sobre o qual toda especulação é impossível, porque transcende o poder da concepção humana e porque somente o diminuiria qualquer expressão ou comparação humana”[11]. Esse princípio presente no homem é chamado de atman por Blavatsky.
Nas Cartas dos Mahatmas é dito: “…existe somente um elemento, e é impossível compreender nosso sistema antes que uma concepção correta dele esteja firmemente fixada em nossa mente. […] Esse elemento, portanto, para falar metafisicamente, é o único substrato ou causa permanente de todas as manifestações no universo fenomênico”.[12]
O dhatu, ou elemento presente em tudo e presente no homem, quando purificado dos obscurecimentos, é chamado Dharmakaya, e quando ainda não purificado é chamado Tathagatagarbha. O Maha-parinirvana-sutra, um dos chamados Sutras Tathagatagarbha, ou seja, textos atribuídos a Buddha sobre esse assunto, ensina: “O atman é o Tathagatagarbha. Todos os seres possuem uma Natureza-Buddha, isso é o que o atman é. Esse atman, desde o começo, está sempre coberto por inumeráveis contaminações: é por isto que os seres são incapazes de percebê-lo.”[13]
Contudo, essa visão de uma essência última do texto de Maitreya em todos os fenômenos não é a linha de ensinamento do budismo tradicional. O Budismo do sul da Índia, o Budismo hinayana, falava de uma essência diferente e própria a cada um dos múltiplos fenômenos do universo, que o Budismo do norte, mahayana, com a Escola Madhyamika, de Nagarjuna, e posteriormente com a Escola Prasangika-Madhyamaka, negou afirmando a falta de essência (anatman) de todos os fenômenos. Foi a Escola Jonang que resolveu a aparente contradição ao afirmar a falta de essência relativa de cada fenômeno e a existência de uma essência última única, comum a todos os fenômenos. Essa essência é permanente, estável, serena e eterna. Ela é vazia de tudo o que não seja ela mesma, ou seja, é vazia de outro (shentong ou gzhan stong). Um dos seus principais expoentes, Dolpopa (1292 -1361) sintetizou as duas visões de vazio expostas pela Escola Madhyamika, de Nagarjuna, e pela Escola Yogacara, de Maitreya e Asanga e denominou essa abordagem de Mahamadhyamika, ou Grande Madhyamika.
Os principais ensinamentos da Escola Jonang eram principalmente o Kalachakra e o vazio de outro, shentong, que se baseava eminentemente no Ratnagotravibhanga. A Escola começou com Yumo Mikyo Dorje (yu mo mib skyod rdo rje), no séc. XII, que recebeu ensinamentos de um mestre Kalachakra da Caxemira, Somanatha, que traduziu o comentário ao Kalachakra Vimalaprabha para o tibetano. Yumo expôs oralmente esses ensinamentos como um “Dharma secreto” (lkog pa’i chos)[14], que só foram escritos por Dolpopa. No entanto, essa escola foi fechada no séc. XVII, e seus textos tornaram-se bem raros, sendo recuperados e divulgados no Ocidente a partir de 1992.
Blavatsky e os Mahatmas fazem muitas referências também a Tsongkhapa e à escola Gelugpa, em obras como A Doutrina Secreta e em suas cartas, publicadas depois como As Cartas dos Mahatmas. Também há referências à “escola dos gorros amarelos” em notas de rodapé em A Voz do Silêncio. Em suas viagens ao Tibete, Blavatsky visitou a região de Tashi Lhunpo e morou em Shigatse por um tempo, ponto central de atuação dos Panchen Lamas, que preservavam os ensinamentos mais reservados e os tantras. Na escola Gelugpa, a linha de ensinamentos das escolas Yogacara e Jonang seguiu-se pela linhagem do mosteiro de Ensa.
Concluindo, Blavatsky traz para o Ocidente ensinamentos budistas que se mantiveram reservados durante séculos. Ensinamentos semelhantes haviam sido anteriormente expostos pelas Escolas Yogacara e Jonang, contudo não representaram a corrente tradicional budista. Recentemente, esses ensinamentos vêm sendo traduzidos e retomados, e a obra de Blavatsky, ao mesmo tempo em pode ser compreendida de forma mais ampla, pode ajudar a compreender uma grande quantidade de ensinamentos budistas que foram redescobertos e adquiridos por universidades americanas e alemãs nas últimas décadas e estão disponíveis para serem traduzidos e estudados.
[13] Étienne Lamotte, The Teaching of Vimalakīrti, tradução inglesa de Sara Boin, Londres. The Pali Text Society, 1976, Introdução, p. lxxvii, in David e Nancy Reigle, in Blavatsky’s Secret Books. San Diego. Wizards Bookshelf. 1999. p. 114.
[14] “The Jo nang pas: A School of Buddhist Ontologists According to the Grub mthah shel gyi me long”, de D. S. Ruegg, Journal of the American Oriental Society, vol. 83, 1963, p. 83, in David e Nancy Reigle, Blavatsky’s Secret Books,. San Diego. Wizards Bookshelf. 1999. p. 83.
O BUDDHADHARMA NA ÍNDIA
Sidharta Gautama (643-563 a.C.), o Buddha, o Iluminado, também chamado de Shakyamuni, o sábio do clã dos Shakyas, nasceu em Lumbini, região do Nepal, que, na época pertencia à Índia. Em seu tempo, a filosofia indiana, que se fundamentava nos Vedas, estava em seu período clássico. Siddharta teve contato com as idéias da Nyaya, que trata da lógica e epistemologia, da reta cognição; da Samkhya, que trata da evolução cósmica a partir da interação do espírito com a substância cósmica (purusha e prakriti); praticou a ioga, que posteriormente será sistematizada por Patanjali e que aponta a unidade entre o Ser Universal (Brahman) e o Ser no homem (Atman); teve contato com as ideias que posteriormente serão sistematizadas pela Vedanta, formada pelos Upanishads, textos filosóficos e metafísicos que enfatizam a identidade entre o Atman e Brahman, e a ética jainista de Mahavira.
A partir de tudo isso, formulou seu próprio ensinamento, fundamentado em Quatro Nobres Verdades[i]:
[ii]Duhkha – o sofrimento, as dores físicas e psicológicas, as aflições, o desespero, a insatisfação, a incompletude presentes na existência, a tristeza causada pela constatação da impermanência.
Avidya – a causa do sofrimento, a forma equivocada como o pensamento percebe o mundo e concebe a noção de eu, ilusão derivada do próprio pensamento, presença de conceitos equivocados na mente, a partir dos quais ela funciona e vê o mundo. Avidya é a presença de fatores mentais que impedem o surgimento da sabedoria, da compreensão e da clara visão, fatores mentais que não possibilitam a percepção pura, sem distorções. Avidya é um erro cognitivo que gera perturbações na mente (kleshas) e ações que geram experiências futuras da mesma natureza da intenção com que foram feitas (karma) e prende as pessoas em um ciclo interminável de nascimentos e renascimentos compulsórios (samsara).
Nirodha – a cessação do sofrimento, o nirvana, a cessação do equívoco da noção de um eu possuidor de uma essência própria.
Marga – senda que conduz à libertação do samsara. Esta senda é composta de oito pontos: reta compreensão; reto pensamento; reta fala; reta ação; reto meio de vida; reto esforço; reta atenção; reta meditação.
Inicialmente, Buddha ensina o caminho para a libertação do ciclo de renascimentos, e aquele que alcança esse estado é um liberto, um arhat.
Seus principais discípulos foram Mahakashyapa, que promoveu o I Concílio, após a morte de Buddha, reunindo os ensinamentos; Ananda, seu primo e auxiliar, que, após sua morte, foi designado responsável por guardar, preservar, proteger e conceder o Dharma; Katyana, que elaborou um método de interpretação dos ensinamentos; Shariputra, que sistematizou pontos mais elevados do Dharma, o que depois vai se tornar o Abhidharma; Maudgalyana, que tinha grande poder meditativo; Subhuti, que teve um grande entendimento de seu ensinamento. Outro discípulo importante foi Suchandra, que recebeu de Buddha as práticas meditativas profundas, o tantra budista.
Cem anos após a morte de Buddha, foi realizado o II Concílio, no qual foram reconhecidos os Sutras Mahayana. Um personagem chamado Mahadeva apontava para o fato de que o estado de um Buddha era a libertação final, e não o estado do chamado arhat. Introduz-se a ideia do bodhisattva, que busca a libertação não com a motivação egoísta de se libertar do próprio sofrimento, mas para auxiliar todos os seres a se libertarem. Começa-se a se falar de Maitreya, o próximo Buddha.
Nesse momento, Theravadas, que reconheciam como legítimos somente os primeiros sutras, separam-se do grupo maior (mahasangha).
Vasumitra, Dharmatrata, Ghosaka, Buddhadeva promovem o III Concílio, em 260 a.C., em que revisam os sutras, corrigindo omissões, interpolações e deturpações. Essa é a época do rei Ashoka, que funda a universidade budista de Nalanda.
É estabelecido o tripitaka, ou as três cestas de ensinamentos: sutras, que são os ensinamentos filosóficos; vinaya, que trata de preceitos de vida; abhidharma, uma sistematização dos sutras em pontos específicos.
Os temas principais do Abhidharma são:
- Os skandhas dos seres (agregados psicofísicos), os dhatus (elementos) e os ayatanas (as consciências dos sentidos). Os skandhas são: rupa, a forma; vedana, as sensações; samjna, as discriminações; samskaras, as tendências; vijnana, a consciência, o pensamento. Os dhatus são: os órgãos dos sentidos, as consciências dos sentidos, os objetos de percepção.
- Os samskaras, as tendências que direcionam o fluxo mental.
- O karma, as ações realizadas, que geram experiências futuras.
- Os kleshas, as perturbações da mente.
- Os Bodhisattvas e as sendas de acumulação de ações meritórias; de esforço para eliminar os kleshas grosseiros; da visão intuitiva da natureza do eu e dos fenômenos, que liberta dos grilhões dos kleshas.
- A sabedoria originada pelo estudo do Dharma, pela reflexão e pela meditação que percebe a falta de existência inerente do eu e dos fenômenos.
- Os samadhis, que são estados meditativos profundos.
Entre os séculos I a.C. a I d.C., começam a surgir os Sutras Prajnaparamitas, que consolidam a senda Mahayana, o Grande Veículo, a senda dos Bodhisattvas, dos praticantes que desenvolveram a intenção altruísta de alcançar a Iluminação em benefício de todos, preservando o ensinamento e mantendo-o sempre disponível para que todos possam alcançar a libertação do sofrimento.
Esses textos enfocam as virtudes, chamadas paramitas: generosidade (dana), harmonia nas ações (shila), paciência (kshanti), perseverança (virya), plena atenção (dhyana), sabedoria (prajna). Há uma ênfase em prajna, a sabedoria que compreende o vazio de existência inerente do eu e dos fenômenos.
Dentre os Sutras Prajnaparamitas estão os conhecidos Sutra do Diamante e Sutra do Coração.
Nagarjuna (c.75-c.165 d.C.) foi abade do centro de estudos budistas de Nalanda. Recebeu os Sutras Prajnaparamitas de Cem mil versos e os difundiu pela Índia, assim como com seu mestre, Saraha, também chamado Rahulabhadra. A partir de Nagarjuna, o Mahayana se consolida.
Em suas obras, Nagarjuna enfatizou o Caminho do Meio, que estabelece que o eu e os fenômenos não existem do modo como parecem existir, contudo não são inexistentes. Enfatizou a realidade relativa e a realidade última. Enfatizou também o fato de que nada surge a partir de si mesmo, mas a partir de causas e condições.
Escreveu Mulamadhyamikakarika, Setenta Versos sobre o Vazio; Carta a um Amigo; Guirlanda Preciosa (Ratnavali).
Seus principais seguidores foram Aryadeva, que escreveu Quatrocentos Versos, sobre os atingimentos ióguicos dos Bodhisattvas, e, posteriormente, Ashvagosha.
No séc. III começam a surgir os Sutras Tathagatagarbha, como o Tathagatagarbha Sutra, o Sutra da Rainha Sri Mala Devi, Daranishvara Sutra, que tratam da semente de Buddha, ou a natureza-Buddha, ou o dharmadhatu, presente em tudo o que existe. Nenhum fenômeno possui uma essência própria, mas todos possuem uma única essência, comum, o dharmadhatu, o elemento imperecível, que é profunda paz, plena sabedoria e plena compaixão.
Nesta época, surgiu o texto Samdhinirmochana, composto de diálogos de Buddha com seus discípulos sobre os obstáculos que impedem a Iluminação, que é classificado como um dos Sutras Mahayana.
A Escola Yogacara enfatiza a prática da ioga. Asanga (309-389), seu fundador faz um retiro de 12 anos e traz cinco tratados de Maitreya, que comenta os Sutras Mahayana no Ornamento dos Sutras Mahayana (Mahayanasutralamkara); comenta os Sutras Prajnaparamitas no Ornamento da Clara Visão (Abhisamayalamkara); comenta o vazio e os extremos de se afirmar os fenômenos como autoexistentes ou negar-lhes a existência, retomando a Escola Madhyamika, na Distinção entre o Meio e os Extremos (Madhyanta Vibhanga); comenta os fenômenos e a natureza última em Dharma e Dharmata; comenta os Sutras Tathagatagarbha, no Ratnagotravibhanga, ou Uttaratantrashastra.
Asanga escreveu Yogacarabhumi, que trata dos níveis de meditação e dos níveis dos Bodhisattvas; texto sobre o Abhidharma (Abhidharmasamuccaya), visão geral do Mahayana (Mahayanasamgraha); comentário ao Ratnagotravibhanga.
Seus irmãos Vasubandhu (m. 407) e Sthiramati também foram muito importantes para essa escola. Vasubandhu também escreveu sobre o abhidharma em Abhidharmakosha, além de tratados sobre os agregados (Pancaskandhaprakarana), sobre o karma (Karmasiddhiprakarana), sobre as três naturezas dos fenômenos (Trisvabhavanirdesha), Tratado em Trinta Estrofes (Trimshika), entre outros. Sthiramati comentou os tratados de Maitreya e de Vasubandhu.
A Escola Yogacara não é a Escola Cittamatra, ou Vijnanavada, que defende que os fenômenos só existem mentalmente.
Para saber mais, A Escola Yogacara.
Dignaga (480-540) foi discípulo de Vimuktisena, um dos continuadores da Escola Yogacara e estabeleceu a epistemologia budista. Influenciado também pela Escola védica Nyaya, procurou detalhar o modo como a cognição se dá e os fatores mentais envolvidos e também apontar os meios para a reta percepção (pramana), o reto conhecimento, a cognição válida.
Escreveu Pramanasamuccaya e Abhidharmakoshamarmadhipa, um comentário ao Abhidharmakosha, de Vasubandhu, entre outros. Seus principais continuadores são Ishvarasena e, posteriormente, Dharmakirti (530-600), que escreveu Pramanavartika.
Bhavya, ou Bhavaviveka (c.450-c.520), foi o fundador da Escola Svatantrika, que admitia o uso de inferências para abordar o vazio de existência inerente do eu e dos fenômenos (shunya). Utilizava instrumentos lógicos semelhantes à da Escola védica Nyaya.
Svatantra é um método que analisa inferencialmente uma afirmação relativa ao vazio, sem considerar as afirmações do oponente. Bhavaviveka procurava refutar as ideias da corrente de pensamento cittamatra (não confundir com yogacara), que afirmava que os fenômenos existem apenas mentalmente.
Suas principais obras são Prajnapradipa, Madhyamakakrdayakarika e Tarkajvala, e seus principais continuadores são Jnanagarbha, Shantarakshita, Kamalashila e Haribhadra.
Chandrakirti (c.485-c.555) estudou com Bhavya quando jovem, mas retoma o método da consequência (prasanga), de Buddhapalita. A partir de sua atuação, a filosofia de Nagarjuna passa a ser chamada Madhyamika-Prasangika. Escreveu Introdução ao Caminho do Meio (Madhyamakavatara); Prasannapada, comentário ao Madhyamikakarika, de Nagarjuna; e um comentário aos Quatrocentos Versos, de Aryadeva. Um de seus principais discípulos foi Jnanagarbha.
As Escolas Prasangika e Svatantrika são dois métodos diferentes para abordar shunya, tema central da Escola Madhyamika.
O BUDDHADHARMA NO TIBETE
No século VIII, Shantarakshita foi convidado pelo rei Tritsong-de-tsen a ensinar o Dharma no Tibete. É fundado então o primeiro mosteiro, Samye, onde foi criado um núcleo de traduções. Seu discípulo Kamalashila (725-798) escreveu Os Estágios da Meditação (Bhavanakrama), no qual explica que o caminho para a Iluminação é gradativo e que não existe uma Iluminação súbita, como alguns personagens que também haviam sido convidados a ensinar no Tibete estavam defendendo. Além disso, Kamalashila chama a atenção para o fato de que não basta aquietar a mente (shamata), é preciso realizar o segundo passo, que é a meditação analítica (vipasyana) que desfaz o mecanismo de avidya presente no fluxo mental. Essa obra é o início do que mais tarde será conhecido como textos LamRim, que apresentam tópicos sistematizados de uma senda graduada para a libertação.
Outras escolas desenvolveram-se no Tibete, contudo, por apresentarem divergências em alguns pontos filosóficos e tântricos, não serão abordadas neste site.
Atisha (982-1054), após ter aprendido com seu mestre Serlingpa, dirige-se para o Tibete a convite do rei Yeshe Od e lá, junto com Abhayakirti, Dromtonpa e outros estabelecem um núcleo de traduções e de difusão do Dharma no mosteiro de Reting. Surge a Escola Kadampa, cujo currículo foi elaborado por seu discípulo Dromtonpa.
Com a Escola Kadampa surgem os textos LamRim, a senda graduada para a Iluminação, que trata de tópicos como a importância do ensinamento e do mestre, a impermanência, o sofrimento, a originação dependente, bodhicitta, as paramitas, a visão do vazio, para serem estudados, refletidos e meditados. Estudavam os textos clássicos da Escola Madhyamika, da Escola Yogacara, os pramanas. Atisha, Potowa, Langri Thangpa, Sharawa, Chekawa, Thogsmed Zangpo escreveram textos lojong, de transformação da mente, dando continuidade a essa abordagem criada por Shantideva.
A Escola Sakya estabeleceu-se a partir de Sanchen Kunga, que recebeu ensinamentos de personagens anteriores, como KonKonchog e Dromi. A Escola Sakya teve uma atuação semelhante à da Kadampa, traduzindo e revisando textos, produzindo comentários. A ênfase da escola era mais tântrica, principalmente em Hevajra, prática ligada à compaixão. Outros personagens importantes são Drakpa Gyaltsen e seu sobrinho Sakya Pandit e Yonten Gyatso.
Um discípulo de Yonten Gyatso chamado Buston (1290-1364) atuou no mosteiro Zhalu. Organizou, revisou e editou o Tanjur, o conjunto de comentários aos ensinamentos de Buddha. Além disso, escreveu A Vida de Shakyamuni, História do Buddhismo na Índia e no Tibete e História do Tantra, comentou o obras de Maitreya, Asanga, Dharmakirti, Haribhadra, Shantideva. Reuniu as linhagens Dro e Ra do Kalachakra.
Dolpopa era da região de Dolpo, no Nepal. Discípulo de Yonten Gyatso, recebeu ensinamentos sobre os Sutras Tathagatagarbha e sobre a Escola Yogacara, principalmente o Uttaratantra, ou Ratnagotravibhanga, que tratam da natureza-buddha presente em todos os seres. Recebeu de seu mestre e de Buston instruções sobre o Kalachakra. Assumiu a direção do mosteiro Jonang e procurou unir as filosofias das Escolas Madhyamika e Yogacara com a visão Shen Tong, o Vazio de Outro, a essência última de todas as coisas, que não é vazia de existência inerente.
Escreveu O Quarto Concílio, o Dharma da Montanha.
Outro expoente da Escola Jonang, Bodong Namgyal, foi um dos mestres do I Dalai Lama, Gedun Drub.
Para saber mais Dolpopa e o Núcleo Jonang
Tsongkhapa, ou Lobsang Drakpa, discípulo do Sakya Rendawa, Tsongkhapa fundou a Escola Gelugpa, dos gorros amarelos.
Estudou os Sutras Prajnaparamitas, as Escolas Madhyamika, Yogacara, os pramanas, a filosofia prasanga-madhyamika de Budhapalita e Chandrakirti e transmitiu-os a seus discípulos. Escreveu três textos do tipo LamRim: um curto, um médio e um longo. Enfatizou os três principais aspectos da senda: renúncia, bodhicitta e prajna, a sabedoria que percebe a falta de existência inerente do eu e dos fenômenos.
Deu grande impulso ao tantra.
Seus principais discípulos foram Khedrub Palzangpo, Gyaltsab Rinchen, Sherab Senge, Gedun Drub, que posteriormente foi considerado o I Dalai Lama.
Durante sua vida foram construídos os mosteiros de Ganden, Sera e Drepung. Khedrub, Sherab Senge e Gedun Drub reativaram um mosteiro chamado Ensa, e Gedun Drub fundou o mosteiro de Tashi Lhunpo, no sul do Tibete. Esses locais serviram de base para a linhagem dos Panchen Lamas, que preservavam os ensinamentos mais reservados e os tantras.
Nos mosteiros Ensa e Tashi Lhunpo atuaram os preservadores dos colégios tântricos, principalmente da linhagem Kalachakra.
O I, II, III e IV Panchen Lamas foram bastante atuantes. O I Panchen Lama, Lobsang Choskyi Gyaltsen (1570-1662) escreveu 108 textos, dentre eles Caminho para a Bem-Aventurança, O Grande Selo do Vazio, ligado à tradição Mahamudra. O II Panchen Lama, com o VII Dalai Lama, editou uma edição revisada do Kanjur (ensinamentos de Buddha) e do Tanjur (os comentários), a edição de Narthang. O VII Dalai Lama (c.1690-c.1758), considerado o mais nobre dos Dalai Lamas, atuou muito proximamente do segundo Panchen Lama e instruiu o terceiro. O III Panchen Lama escreveu Caminho para Shambala. A partir do IV Panchen Lama, começa a haver problemas a direção política da tradição, o que causa um recolhimento. A partir do V Panchen Lama, começa a haver nomeações e intervenções chinesas.
Atuaram preservando o Dharma, Kangsar Dorje Chang, seus discípulos Lamas Pabongka e Trijang, cujos discípulos foram Ling, Serkong, Zong, Dhargyey, Jamiyang, Rabten, entre outros. Apos a invasão do Tibete pela China, os mosteiros se transferiram para a Índia. Atualmente, Pabongka tulku (renascido) atua no Nepal; Trijang tulku atua nos Estados Unidos, e Rabten tulku atua na Suíça.
David Reagle afirma que, com a invasão pela China, muitos textos foram adquiridos por universidades e centros de estudos budistas por universidades americanas e alemãs e que há muito material a ser traduzido nessa transferência do Buddhadharma do Tibete para o Ocidente.
Referências bibliográficas:
Alberto Brum – A Libertação do Sofrimento no Budismo Tibetano Gelugpa, Ed. Teosófica.
Buston – The History of Buddhism in India and Tibet, ed. Sri Satguru Publications.
Taranatha – History of Buddhism in India, ed. Motilal.
George Roerich – Blue Annals, ed. Motilal.
“Lama Dolpopa e a Base para o Budismo Shentong”, em http://budismoshentong.blogspot.com.br/p/lama-dolpopa-e-base-para-o-budismo.html, acessado em maio de 2017.
Nyaponika Thera e Hellmuth Hecker – Great Disciples of the Buddha, ed. Wisdom.
[i] Presentes no Dharmachakra Sutra.
[ii] Esta explicação deste tópico encontra-se presente no livro A Libertação do Sofrimento no Budismo Tibetano Gelugpa, de Alberto Brum.
AS ESCOLAS
A Escola Yogacara (em tibetano, Naljor Chodpa) é uma corrente filosófica budista que se desenvolveu na Índia a partir do séc. IV d.C, tendo-se iniciado com Arya Asanga (315- 385), e seus dois irmãos, Vasubandhu e Sthiramati. Segundo a História do Budismo na Índia, de Taranatha, Asanga (tib. Phagspa Thogsmed) inicialmente recebeu instruções de sua mãe, que conhecia a coleção dos sutras e o Abhidharma[1]. Depois, foi ordenado monge e estudou o Tripitaka[2], os Sutras Mahayana e os Sutras Prajnaparamita. Posteriormente, é dito que se recolheu em retiro durante 12 anos, quando se tornou um grande iogue e obteve a inspiração do bodhisattva Maitreya, também chamado Ajita. Por ter-se dedicado a Maitreya, Asanga é chamado também de Maitreyanatha.
Após esse período, Asanga estabeleceu um mosteiro em Magadha, onde escreveu os chamados Cinco Tratados de Maitreya e escreveu suas próprias obras, como o Yogacarabhumi, que trata dos estágios da yoga. A palavra “yogacara”, significa a prática da yoga. Além disso, passou sua vida fortalecendo, junto com seus discípulos, a difusão do Dharma Mahayana por vários mosteiros e estabelecendo novos centros em toda a Índia. É dito que passou os últimos 12 anos de sua vida em Nalanda. Sobre ele também é dito que possuía rigorosa conduta ética e um vasto conhecimento.
Seu irmão Vasubandhu (332-407) foi ordenado em Nalanda e estudou o Tripitaka. Posteriormente, foi para a Caxemira, onde estudou o Abhidharma. Inicialmente, seguiu a linha Hinayana, tendo sido convencido por seu irmão Asanga a seguir o Mahayana. Escreveu comentários a textos mahayana, como os Sutras Prajnaparamita e os tratados de Maitreya, e escreveu obras originais. Também viveu em Magadha, onde, assim como seu irmão, ensinou, construiu novos centros de estudo e prática do Dharma e recuperou centros antigos. Posteriormente, dirigiu-se para o Nepal, onde também criou centros do Dharma, e lá morreu.
Sthiramati (366- ), também chamado Virincivatsa, estudou com Vasubandhu desde os 7 anos de idade. Dominou os ensinamentos de Buddha, especialmente o Abhidharma, comentou tratados de Maitreya, de Asanga e de Vasubandhu. Construiu centros do Dharma. Instruiu Dignaga (480-540), posteriormente, se dedicou ao tema da reta percepção, os pramanas.
Para os autores desta escola, a yoga não significava apenas as práticas meditativas em si, mas, sim, todo o caminho a ser trilhado pelo praticante mahayana até a Iluminação. Isso inclui a compreensão de como somos constituídos (skandhas), a compreensão do karma e a percepção das perturbações presentes na mente (kleshas), o conhecimento das sendas de purificação da mente e da prática da yoga, a compreensão dos tipos de sabedoria (derivada do estudo, da reflexão e da meditação), a prática das virtudes (paramitas), o desenvolvimento de bodhicitta, que é a intenção altruísta de alcançar a libertação do sofrimento pelo benefício de todos os seres. Para promover esse conhecimento, Asanga e Vasubandhu escreveram textos do tipo Abhidharma, que tratam desses tópicos específicos do ensinamento de Buddha. Ainda que houvesse a prática do tantra budista, isso era realizado de modo reservado.
Além desses pontos tratados pelo Abhidharma, a Escola Yogacara enfatizou as ideias centrais dos Sutras Tathagatagarbha, sutras que surgiram a partir do séc. III d.C. e que falam da essência fundamental de todos os fenômenos, a natureza-Buddha presente em todos os seres. No Ratnagotravibhanga, um dos cinco tratados de Maitreya que trata desse assunto, é dito: Todos os seres sempre possuem a natureza-Buddha. Essa natureza imaculada é livre da dualidade. A natureza última da mente, que é luz radiante, não é alterada pelas contaminações externas dos kleshas, como desejo e assim por diante, que se originam em concepções errôneas. Ela é o Tathāgata, a Nobre Verdade (da Cessação) e o supremo nirvāṇa.
Houve má interpretação desses ensinamentos por parte de alguns personagens que com eles tiveram contato: Dharmapala (sec. V) e Huan Tsang (séc. VIII). Com eles surgiu a vertente cittamatra (only mind), também chamada vijnanavada. Eles ensinaram e traduziram textos da Escola Yogacara com um viés idealista, considerando que a realidade é composta apenas pela mente e que, quando os textos se referem à natureza última da mente, estariam se referindo ao fluxo mental, alayavijnana, o que é um equívoco.
As ideias da Escola Yogacara tiveram continuidade com Haribhadra, que também estabeleceu conexão com Maitreya e escreveu um comentário a outro dos Cincos Tratados, o Abhisamayalamkara. Além de Haribhadra, foram continuadores Shantideva, Shantarakshita e Kamalashila, estes dois últimos levaram o Dharma para o Tibete, no séc. VIII. Já no Tibete, o Yogacarabhumi fazia parte do currículo essencial da Escola Kadampa, importante escola do budismo tibetano. No séc. XIV, Dolpopa retoma os ensinamentos sobre o tathagatagarbha, a essência de Buddha presente em todos os seres, procurando fazer uma fusão dos ensinamentos da Escola Yogacara com a Escola Madhyamika: a Mahamadhyamika.
No séc. XIX, Helena Blavatsky relata que teve acesso a textos dessa escola que eram mantidos em bibliotecas reservadas no Tibete. Ela conta ainda que decorou 39 deles, dos quais traduziu três e publicou com o título de A Voz do Silêncio. David Reagle, um estudioso da teosofia e do budismo, aponta também que, em uma carta a seu colaborador Alfred Sinnet, Blavatsky refere-se a um dos Cinco Tratados de Maitreya (Jampa’i Chos Nga) como base para Introdução que escreveu para A Doutrina Secreta[3].
Cinco Tratados de Maitreya:
– Mahayanasutralamkara (Ornamento dos Sutras Mahayana), comentário aos Sutras Mahayana;
– Abhisamayalamkara (Ornamento do Claro Entendimento), comentário aos Sutras Prajnaparamitas;
– Madhyanta Vibhanga (Distinção entre os Extremos e o Meio), comentário à Escola Madhyamika;
– Dharma Dharmata Vibhanga (Distinção entre a Realidade Última e os Fenômenos);
– Ratnagotravibhanga ou Uttaratantra Shastra, comentário aos Sutras Tathagatagarbha.
Obras de Asanga:
– Yogacarabhumi, que inclui o Bodhisattvabhumi;
– Abhidharmasamuccaya;
– Mahayanasamgraha – panorama da senda mahayana;
– Arya Samdhinirmochana Bhashya – comentário ao Sutra Samdhinirmochana;
– Vajracchedika Prajnaparamita Shastra – comentário ao Sutra do Diamante[4];
– Sadhana (fórmula meditativa) dedicada a Maitreya.
Obras de Vasubandhu:
– Mahayanasutralamkarabhasya (Comentário ao Mahayanasutralamkara);
– Madhyantavibhangabhasya (Comentário ao Madhyantavibhanga);
– Dharmadharmatavibhanga (Comentário ao Dharmadharmatavibhanga);
– Vyakhyayukti;
– Karmasiddhiprakarana – tratado sobre o karma;
– Pancaskandhaprakarana – tratado sobre os cinco agregados (skandhas);
– Vimshatika -Tratado em Vinte Estrofes;
– Trimshika – Tratado em Trinta Estrofes;
– Abhidharmakosha;
– Abhidharmakoshabhasya – autocomentário ao Abhidharmakosha;
Obras de Sthiramati
Sutralamkaravrttibhasya – explanação sobre o comentário de Vasubandhu ao Mahayanasutramkara, de Maitreya;
Madhyantavibhangatika – comentário ao Madhyantavibhanga, de Maitreya;
Pancaskandhaprakaravibhasa – explanação de Pancaskandhaprakarana, de Vasubandhu;
Trimshikabhasya – explanação do Trimshika, de Vasubandhu.
[1] Abhidharma é a sistematização em tópicos pinçados dos ensinamentos filosóficos, ou sutras, de Buddha.
[2] Tripitaka são os chamados três conjuntos de ensinamentos de Buddha: os sutras, textos filosóficos; o vinaya, regras de conduta; e o abhidharma, sistematização dos sutras em temas filosóficos e psicológicos.
[3] David e Nancy Reigle, Blavatsky’s Secret Books. San Diego. Wizards Bookshelf. 1999. pp. 177.
[4] Vajracchedikaprajnaparamitashastra.
Dolpopa e o Núcleo Jonang
O mosteiro Jonangpa, na região de Jonang, no sudoeste do Tibete, tornou-se um importante núcleo de estudo do sânscrito e de retraduções de textos indianos, principalmente textos vinculados ao tantra Kalachakra e à escola indiana Yogacara.
Inicialmente vinculado à escola Sakya, o mosteiro Jonangpa passa a se diferenciar da primeira e torna-se uma nova escola a partir de seu terceiro abade, Yontan Gyatso (1260-1327) ao promover um currículo que enfatizava os tratados de Maitreya e os sutras sobre a Natureza-Buddha (tathagatagarbha). A escola ganha notoriedade e divulgação entre os meios monásticos budistas com o seu quarto abade, Dolpopa Sherab Gyaltsen (1292-1361).
Em 1325, Yontan Gyatso, solicitou a Dolpopa que se tornasse o seu “herdeiro do Dharma” e aceitasse o cargo de abade do mosteiro Jonang, transformando-se no quarto abade Jonangpa a partir do ano de 1326. Lama Dolpopa reúne em torno de si um grupo de yogues estudiosos e tradutores considerados excepcionais, tais como Mati Panchen Lodro Gyaltsen (1294-1376), Lotsawa Lodro Pal (1299-1354) e Chogle Namgyal (1306-86). Esse grupo torna-se responsável pela retradução comentada de diversos textos importantes do budismo Mahayana indiano que servirão de base para os ensinamentos que serão chamados de “a visão Shentong”.
Dolpopa e seu núcleo de tradutores e comentadores propõem o que ele chama de “Vazio de outro” (Shentong), enfatizando e se baseando nos ensinamentos dos textos vinculados ao tantra Kalachakra, à escola Yogacara e aos Sutras Tathagatagarbha.
Lotsawa Lodro Pal e Mati Panchen Lodro Gyaltsen, sob os auspícios de Dolpopa, traduziram o tantra Kalachakra e o seu principal comentário, o Vimalaprabha.
Dolpopa e suas obras
Dolpopa nasceu na região do Dolpo, parte do atual Nepal, em 1292. Conforme a biografia fornecida por Cyrus Stearns (2010), aos 17 anos, ele foge da casa dos pais em direção ao Tibete em busca de ensinamentos. É ordenado aos 22 anos de idade, após se graduar no estudo dos Sutras Prajnaparamita e da cosmologia budista. Grande parte de seu aprendizado deu-se no mosteiro Sakya. No ano de 1321, já aos 29 anos de idade, visita pela primeira vez o mosteiro na região de Jonang, área de retiro e meditação, na província de Tsang, sudoeste do Tibete.
Dolpopa escreveu muitos tratados curtos, nem todos traduzidos para línguas ocidentais ainda. Três tratados longos são considerados os seus principais trabalhos e já foram traduzidos para o inglês: The General Commentary on the Doctrine (bstan pa spyi ‘grel), Mountain Doctrine: An Ocean of Definitive Meaning (ri chos nges rgya mtsho), ambos concluídos provavelmente até 1333, e o Fourth Council (bka’ bsdu bzhi pa) com o seu próprio comentário ao texto (rang ‘grel) e o sumário (bsdus don), elaborados nos últimos anos de sua vida.
Buston Rinchen e o mosteiro Zhalu
Dolpopa também atuou junto de Buston Rinchen (1290-1364), abade do mosteiro Zhalu e responsável pela sistematização do cânone budista, organizando o Kanjur (sutras, tantras, código vinaya) e Tanjur (textos abhidharma, comentários e tratados), deixando de lado os textos que não tinham uma fonte idônea.
Essa mesma sistematização de Buston seguida pela tradição Jonang e Zhalu é posteriormente adotada pela escola Gelugpa, de Tsongkhapa.
A Jonang pós-Dolpopa
Após o tempo de Dolpopa, houve outros personagens importantes na tradição Jonang, como Bodong Namgyal, no século XV, um dos gurus do gelugpa Gedun Drub (o I Dalai Lama), e Jestun Taranatha, no século XVII, autor de importantes obras sobre a história do budismo, a visão Shentong, a linhagem de Tara e um texto lamrim (a senda graduada).
Taranatha (1575-1634) foi o último abade do mosteiro Jonang. No século XVII, a escola foi fechada pelo V Dalai Lama e deixou de existir institucionalmente. Vários textos Jonang, como as obras de Dolpopa e outros, desapareceram, sendo que alguns desses textos foram redescobertos a partir do final do século XX.
Referências:
STEARNS, Cyrus. The Buddha from Dölpo. Ithaca:Snow Lion, 2010.
A tradição iniciada por Lama Tsongkhapa (1357-1419), também conhecido como Lobsang Drakpa Gyaltsen, marca uma retomada e dá um novo fôlego para os ensinamentos centrais das linhagens Kadampa e Sakya, numa tentativa de elucidar os ensinamentos do Sutra e do Tantra.
Tsongkhapa nasceu na região de Amdo, leste do Tibete, e viveu num mosteiro Kadampa até os 16 anos de idade. Recebeu ensinamentos da linhagem Kadampa referentes à explanação textual, ao lamrim e ensinamentos orais de Choskyog Zangpo e Namkha Gyaltsen sobre lojong. Recebeu instruções de Mati Panchen, da escola Jonang, quando jovem e de Khenchen Rinchen Namgyal, discípulo de Butön Rinchen Drub, do mosteiro Zhalu. Teve grande proximidade com o Lama Rendawa, da escola Sakya, que o influenciou na ênfase prasangika-madhyamika.
Considerado o grande reformador do budismo no Tibete, Lama Tsongkhapa retomou a ênfase nos ensinamentos mahayana e textos lamrim, isto é, os ensinamentos sobre a senda graduada, seguindo a tradição iniciada por Atisha (Kadampa – século XI), autor do primeiro texto lamrim. Tsongkhapa, por sua vez, escreveu três textos lamrim, sendo que o tratado mais extenso, o Lamrim Chen Mo, é uma de suas obras mais conhecidas. Ele também restituiu as regras monásticas originais (o código vinaya) para os monastérios de sua nova escola.
Ao todo, foi autor de mais de 120 textos, constituindo 18 volumes, sobre a filosofia budista, o vajrayana, a senda, as paramitas e daí por diante. Apresentou em textos curtos, como os Três Principais Aspectos da Senda, uma síntese do caminho mahayana, identificando como pontos essenciais a renúncia, bodhicitta (a mente desperta e altruísta) e o desenvolvimento da sabedoria (prajna) que compreende o vazio de existência inerente do eu e dos fenômenos (shunyata) como pré-requisitos para que se possa avançar na senda vajrayana.
Além disso, escreveu textos comentando ensinamentos como o funcionamento da mente na visão Yogacara[1]. Também comentou o Bodhisattvabhumi, de Asanga, e o Abhisamayalamkara, de Maitreya. Comentou os Sutras Prajnaparamita, escreveu tratados e comentários sobre tantras, como o Chakrasamvara e o Guhyasamaja.
Sob sua supervisão direta foram construídos os três primeiros mosteiros Gelugpa, que se tornariam os maiores centros dessa escola nos séculos futuros: Ganden, Sera e Drepung.
Ganden, localizado no monte Drokri, próximo a Lhasa, foi a sede da escola e local de residência do Ganden Tripa, o chefe da escola Gelugpa, sendo Tsongkhapa o primeiro Ganden Tripa. Ganden é um sinônimo de Tushita, ou Terra Pura. Fundado em 1409, também foi a primeira base do colégio tântrico Gelugpa. Tsongkhapa foi sucedido por seus dois discípulos mais próximos, Gyaltsab Dharma Rinchen (1364-1432), o II Granden Tripa, e Khedrub Palzangpo (1385-1438), o III Ganden Tripa. Posteriormente, o cargo de Ganden Tripa passou a ser designado ao abade mais velho de um dos colégios do mosteiro (Ganden Jangtse e Ganden Shartse).
Drepung foi fundado em 1416 por Jamyang Choje Tashi Palden, também discípulo de Tsongkhapa. Era um centro de estudos e treinamento monástico onde alguns Dalai Lamas, como o III Dalai Lama Sonam Gyatso (c.1543-1588)[2], viveram posteriormente. Construído num local de retiros de Tsongkhapa,,o mosteiro de Sera, por sua vez, foi inaugurado em 1419. Seu primeiro abade foi Shakya Yeshe (1352-1435). Sera tem dois colégios principais: Sera Me e Sera Je.
A escola Gelugpa passou a se diferenciar por meio de seus gorros amarelos e pela adoção do currículo Kadampa original para o treinamento dos estudantes, com uma formação longa, extensa e gradual. O noviço iniciaria seus estudos como um monge, recebendo a base hinayana e o código monástico (vinaya), e poderia se tornar um geshe somente após 10 a 15 anos de estudos da base mahayana e filosófica, tendo de passar por uma avaliação final, para, então, ingressar posteriormente nos colégios tântricos e receber o título de Lama. Nesse currículo original, somente lamas muito avançados deveriam receber o título de Rinpoche.
A partir da sede, em Ganden, enfatizavam-se os ensinamentos, autores e linhagens que viriam a formar a tônica da escola Gelugpa, como o lamrim (a senda graduada), lojong (a transformação da mente), Mahamudra, os tratados de Nagarjuna, Asanga e Maitreya, Shantideva, Chandrakirti, os ensinamentos da linhagem Kadampa (Atisha, Naropa, Drontompa), os textos centrais da escola Sakya e tantras como Guhyasamaja, Chakrasamvara e Yamantaka. Gyaltsab deu grande ênfase à visão prasangika e escreveu textos sobre o tantra.
O núcleo mais interno da escola Gelugpa também viria a se tornar o mantenedor do sistema Kalachakra. Khedrub Palzangpo tornou-se o diretor do colégio tântrico privado de Ganden, recebendo a transmissão Kalachakra do próprio Tsongkhapa. Escreveu comentários sobre textos Yogacara, Madhyamika-Prasangika, Sutras Prajnaparamita, um tratado sobre shunyata, comentários sobre tantras, dentre os quais o Kalachakra, Guhyasamaja e Chakrasamvara.
Além de seus dois sucessores e discípulos mais próximos, Gyaltsab e Khedrub, no círculo de principais discípulos de Tsongkhapa incluem-se o já citado Jamyang Choje Tashi Palden, Tokden Jampal Gyatso, Sherab Senge, Gedun Drub (o I Dalai Lama), Sakya Yeshe, Londro Rinchen, Ngwang Drakpa, Choje Lekpa ( o IV Ganden Tripa), Rabten Kunzang, dentre outros. Todos esses personagens mantiveram a tônica Gelugpa estabelecida por Tsongkhapa e herdada da linhagem Kadampa e Sakya originais.
Em 1429, Khedrub, Sherab Senge e Gedun Drub estabeleceram o mosteiro Ensa, na província de Tsang, reaproveitando um velho e pequeno mosteiro Sakya abandonado como um local de retiro. Em 1447, Gedun Drub fundou o mosteiro de Tashi Lhunpo, também na província de Tsang, próximo a Shigatse. Sonam Choklang (c. 1438-1505), discípulo de Gedun Drub, tornou-se abade do mosteiro de Ensa e foi seu sucessor em Tashi Lhunpo. Uma linhagem de preservadores e mantenedores dos ensinamentos mais internos da escola Gelugpa e do Kalachakra estabelece-se, então, nesse núcleo.
Os Panchen Lamas
No mosteiro de Ensa também atuou Choskyi Dorje (c. 1447-1541), discípulo de Baso Gyeltsen (o VI Ganden Tripa). O discípulo de Choskyi Dorje, Gyelwa Ensapa (1505-1566) instruiu Khedrub Sangye Yeshe (1537-1609), que, por sua vez, foi o instrutor de Lobsang Choskyi Gyeltsen, o I Panchen Lama (c. 1567-1662)[3]. O mosteiro de Tashi Lhunpo, então, torna-se a residência dos Panchen Lamas. O I Panchen Lama teve muitos discípulos, ensinando o Dharma e concedendo transmissões em diversos mosteiros Gelugpa, tornando-se também abade do monastério de Zhalu. Escreveu vários tratados, textos de guru yoga, comentários a textos lamrim e lojong e ao Kalachakra, biografias, dentre outros textos.
O II Panchen Lama, Lobsang Yeshe (c. 1633-1737) instruiu o VII Dalai Lama, chamado de o “mais nobre dos Dalai Lamas”, e juntos publicaram a edição de Narthang do cânone budista (O Kanjur, a coleção mais antiga de ensinamentos derivada de Sidharta. e o Tanjur, a coleção de comentários). O III Panchen Lama, Lobsang Palden Yeshe (c.1738-1780), foi instruído pelo VII Dalai Lama, e concedeu ensinamentos ao VIII Dalai Lama. O IV Panchen Lama, Palden Tenpai Nyima (c. 1782-1853), foi o último Panchen Lama ligado a essa linhagem mais interna, que se recolheu em 1853 devido a conflitos que começam a se intensificar a partir daquele período no Tibete.
Já nas primeiras décadas do século XX, mesmo com a linhagem mais interna recolhida, o VI Panchen[4], Thubten Choskyi Nyima Lama, junto de seu secretário, empreendem esforços para dar um novo fôlego aos ensinamentos. O VI Panchen Lama também inicia as primeiras transmissões públicas do Kalachakra na China.
Eles também assinam o prefácio da edição de 1927 do texto “A Voz do Silêncio” (contendo a edição original organizada por “HPB” em 1889), como “a primeira exposição legítima do budismo Mahayana no Ocidente até então”[5], após receberem a visita de Alice Cleather, membro do grupo interno de Blavatsky, e sua comitiva na China.
Expoentes da Gelugpa no século XX e início do XXI
A partir do século XX, nomes importantes como Pabongka Rinpoche, cujos discípulos foram Kangsar Kyabgon Rinpoche, Kyabje Zemey, Trijang Rinpoche, Kyabje Yongzin Ling, Kyabje Serkong, Kyabje Song, que, por sua vez, tiveram como discípulos Geshe Dhargyey, Geshe Rabten, Kirti Rinpoche, Lama Dagom, Geshe Sopa, Lama Lobsang Tarchin, Lama Yeshe, dentre outros, contribuíram para a divulgação e transmissão de ensinamentos da escola Gelugpa, inclusive no Ocidente. Alguns deles escreveram comentários e textos sobre o lamrim, lojong, karma, as seis paramitas, dentre outros tópicos centrais do budismo mahayana e sobre o vajrayana. Os tulkus de alguns desses personagens, como o próprio Trijang, já começaram a atuar no século XXI.
Referências:
Textos do Centro Lamrim Ensa (Lux, Brasília).
[1] Ocean of Eloquence: Tsong kha pa’s Commentary on the Yogacara Doctrine of Mind (SUNY Series in Buddhist Studies).
[2] Sonam Gyatso foi o primeiro de fato a receber o título de Dalai Lama após visita à Mongólia.
[3] Noutra contagem (chinesa) os Panchen Lamas incluem na seguinte ordem: Khedrub Palzangpo, Sonam Choklang, Ensapa como os três primeiros Panchen Lamas (uma classificação póstuma no caso desses três). Entretanto, foi Lobsang Choskyi Gyaltsen o primeiro a, de fato, assumir esse título oficialmente.
[4] IX Panchen Lama na outra forma de contagem dos Panchen Lamas já citada.
[5] Editorial Forward, The Voice of The Silence, Pequim: The Chinese Buddhist Research Society, 1927.
O TANTRA
A tradição Kalachakra é a preservadora de um sistema tântrico ensinado por Buddha. A palavra sânscrita “tantra” significa “método”. Assim, o tantra budista mahayana é um método, composto de práticas de meditação, que visa a conduzir o praticante ao estado de um Buddha em benefício de todos os seres. O Tantra de Kalachakra, ou Tantra do Ciclo do Tempo, trata de aspectos macrocósmicos e microcósmicos da existência cíclica e apresenta uma possibilidade de purificação, de modo a se manifestarem a sabedoria que percebe o vazio e a bem-aventurança compassiva.
Esse sistema tântrico foi transmitido na Índia por Buddha Shakyamuni a Suchandra, Rei de Shambala. Suchandra registrou esses ensinamentos no chamado Kalachakramulatantra, ou Tantra-Raiz do Kalachakra [1], e escreveu um comentário. Contudo este texto está inacessível, com exceção do capítulo que trata das iniciações, chamado Sekoddesha. Suchandra iniciou uma linhagem de transmissores, dentre quais o sétimo, Manju Yashas, escreveu uma versão resumida, chamada Laghukalachakratantraraja, ou Tantra de Kalachakra Resumido. Seu principal discípulo, Pundarika, escreveu um importante comentário a esse texto, chamado Vimalaprabha, ou A Luz Imaculada. Manju Yashas e Pundarika são os primeiros da linhagem dos chamados kalkins ou kulikas.
O Tantra de Kalachakra Resumido é composto de três áreas principais: o Kalachakra externo, o Kalachakra interno e o Kalachakra alternativo. No total, há cinco livros, que tratam 1) do macrocosmo; 2) do microcosmo; 3) das iniciações; 4) dos estágios de geração e consumação; 5) do resultado da senda, ou seja, jnana, a sabedoria primordial.
O Livro I trata do Kalachakra Externo, do ciclo do tempo medido pelos dias, meses e anos, que têm como referência as órbitas dos planetas, da lua e do sol pelas 12 constelações do zodíaco. Ele trata da realidade externa convencional.
Este livro apresenta uma descrição do sistema solar e do planeta; de sua formação e dissolução; e de seus habitantes.
O Livro II trata do Kalachakra Interno, da fisiologia sutil, das energias que circulam por diferentes canais e pelos centros de energia (lótus sutis ou chakras).
O tempo é medido pela respiração — inalação e exalação — e pela circulação da energia de vida, ou prana, no sistema fisiológico sutil dos indivíduos, descrito como um zodíaco do microcosmo. Os ciclos dos movimentos do prana pelos centros de energia (chakras), que compõem o círculo do tempo interno, são descritos em correspondência com os movimentos celestes.
O Kalachakra Externo e o Interno apresentam as bases da existência cíclica e o modo contaminado em que elas estão estabelecidas.
O Kalachakra Alternativo apresenta as práticas meditativas. Trata-se de um sistema de prática de ioga avançada. Para se ingressar plenamente na senda tântrica, antes é preciso desenvolver a renúncia; bodhicitta, a intenção de buscar a Iluminação pelo bem de todos os seres; e prajna, a percepção intuitiva de que todos os fenômenos são vazios de existência inerente.
O Livro III é o Livro das Iniciações. Inicialmente, há sete iniciações, que são como o crescimento de uma criança:
- Iniciação da água – representa a purificação do corpo, a fala e a mente dos praticantes. Corresponde ao primeiro banho de uma criança.
- Iniciação da coroa – representa a purificação dos cinco agregados (skandhas) e age como uma causa para o surgimento da ushnisha (protusão da coroa de um Buddha), que ocorre quando alguém se torna um Buddha. Corresponde ao primeiro corte de cabelo.
- Iniciação da faixa de seda – representa a purificação das energias sutis. Equivale a colocar ornamentos na criança, como brincos.
- Iniciação do Vajra e do Sino – representa a purificação dos canais de energia. O vajra e o sino estão relacionados com a mente e a fala de Buddha e com prajna e a bem-aventurança. Receber esta iniciação coloca marcas no continuum mental do praticante, para gerar esse resultado. Corresponde ao riso da criança.
- Iniciação da Conduta – representa a purificação das faculdades dos sentidos. É análoga a colocar um anel no dedo da criança.
- Iniciação do Nome – representa a purificação das ações. É análoga a dar um nome à criança.
- Iniciação da Permissão – Ao receber as sete iniciações, o praticante é autorizado a praticar o estágio de geração.
As Quatro Iniciações Superiores são chamadas Iniciação do Vaso; Iniciação Secreta; Iniciação da Sabedoria; Iniciação da Palavra. O praticante é autorizado a praticar o estágio de consumação.
As Quatro Iniciações mais Elevadas, que permitem a alguém realizar as atividades de um mestre vajra, ou seja, explanar e dar iniciações do tantra, recebem os mesmos nomes das Iniciações Superiores: Iniciação do Vaso; Iniciação Secreta; Iniciação da Sabedoria; Iniciação da Palavra.
O Livro IV trata das práticas dos estágios de geração e de consumação. O estágio de geração é assim chamado porque o praticante gera o Palácio de Kalachakra e a si mesmo como a deidade Kalachakra. O praticante deve assumir o Buddha que irá se tornar, visualizando-se como a deidade Kalachakra. O principal objetivo é dispersar o modo de apreensão comum dos fenômenos, que são percebidos como existências separadas. O Palácio de Kalachakra é visto como uma manifestação da Mente de Buddha, e suas várias partes são manifestações dos aspectos da Iluminação.
No estágio de geração é essencial a Ioga Focada no Mestre (Guru Yoga). O mestre representa o Buddha; o ensinamento de Buddha, o Dharma; e toda a linhagem que sustentou esse ensinamento e o preservou no mundo.
No estágio de consumação, o praticante está preparado para lidar diretamente com as energias presentes em seu corpo, a fim de purificá-las dos obscurecimentos que dão sustentação à consciência contaminada que o mantém compulsoriamente no ciclo de existências, o samsara.
O Livro V, trata do resultado da prática do Tantra de Kalachakra, ou seja, de jnana. Jnana é a sabedoria inata nos seres com a qual se percebe a natureza de vazio de existência inerente dos fenômenos. Jnana é a sabedoria que vai além da visão da dualidade entre o sujeito que percebe e o objeto percebido e intui a unidade que está por trás de tudo o que existe. Ela é o antídoto para o sofrimento, pois destrói avidya, a ilusão de separatividade.
Além de jnana pode-se usar o termo maitri, ou amor de Buddha. O amor de Buddha, Maitri, é a contraparte da profunda consciência de ser uno com tudo o que existe.
Neste livro há um capítulo que trata da mandala do Tantra de Kalachakra. A mandala Kalachakra representa um processo reorganizador do sistema de energias dos seres, de modo a manifestar o corpo, a fala e a mente de Buddha. O cosmos, o corpo humano e a mandala do Kalachakra são o aspecto externo, interno e alternativo, ou sublimado, de uma única realidade. Essas são as três moradas do Buddha Kalachakra.
Este ensinamento foi preservado reservadamente e divulgado no séc. X, na Índia, por Tilopa e seus discípulos, dentre eles, Pindo Acharya, também chamado de Serlingpa e de Avadhudipa, e Naropa. Naropa escreveu um comentário à única parte do Tantra-Raiz que está acessível, o Sekoddesha. Foram seus discípulos, dentre outros, Somanatha, que levou essa tradição para o Tibete, desenvolvendo um trabalho de tradução com Dro Lotsawa. Essa tradição também foi transmitida a Rwa Chorab. As linhagens Dro e Rwa são as principais linhas de transmissão, depois fundidas por Buton, no séc. XIV.
A linhagem de Buton chegou a Tsongkhapa, e essa tradição foi preservada reservadamente pela Escola Gelugpa. Seus discípulos imediatos — Khedrub Palzangpo, Gyaltsab Rinchen e Gedun Drub, o I Dalai Lama — estudaram, praticaram, ensinaram e escreveram sobre o Kalachakra.
Muitos Dalai Lamas, como o I, o II, o III e o VII, e Panchen Lamas, como o I, o II e o III e o VI preservaram esta tradição. O III Panchen Lama escreveu Guia para Shambala.
O Tantra de Kalachakra também foi preservado pelas Escolas Sakya e Jonang. Inicialmente, um nome importante da escola Jonang foi Yumo Mikyo Dorje. Mas tarde, Dolpopa e seus discípulos Machi Panchen e Lodro Lotsawa; Bodong Namgyal, importante guru Jonang do I Dalai Lama, e, posteriormente, Taranatha, escreveram amplamente sobre essa tradição.
Kangsar Dorje Chang, mestre do tutor do XIV Dalai Lama, o Dalai Lama atual: Kyabje Ling Dorje Chang, que a transmitiu, entre outros, a Geshe Ngawang Dharghyey.
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[1] O estudioso da teosofia e da tradição budista David Reigle defende que as Estâncias de Dzyan, do Livro de Kiu-te, traduzidas por Helena Blavatsky em A Doutrina Secreta, são trechos desse texto.