BIBLIOTECA GARBHA

Acervo Geral (em ordem alfabética)

  Blavatsky e o Buddhadharma | Mead e o Gnosticismo | Jung e a Alquimia | Corbin e o Ismailismo

 

HP BLAVATSKY E O BUDDHADARMA
Helena Blavatsky trouxe para o Ocidente ensinamentos de Buddha até então mantidos reservados mesmo para os budistas do Oriente. O estudioso americano David Reigle, em seu livro Blavatsky’s Secret Books, acredita ter localizado algumas das fontes dos ensinamentos divulgados por Blavatsky e aponta que essas fontes também foram utilizadas por escolas budistas que surgiram ao longo dos séculos, como a Escola Yogacara e a Escola Jonang.

Blavatsky afirma que sua obra A Doutrina Secreta foi baseada em livros reservados chamados Livros de Kiu-te. Esses livros são uma parte do cânone budista tibetano. O cânone budista é composto por 1.707 obras — 1.083 públicas e 624 secretas —, que são divididas em duas coleções: o Kanjur (bkah-hgyur), os ensinamentos atribuídos a Buddha, e o Tanjur (bstan-hgyur), os comentários escritos ao longo dos séculos.  O Kanjur, por sua vez, é dividido em dois tipos: os discursos, ou sutras (mdo-sde, em tibetano), e os tantras budistas (rgyud-sde), que são considerados os ensinamentos mais elevados de Buddha. Segundo Reigle, a divisão rgyud-sde, foi transliterada por Blavatsky como “Kiu-te”, uma transliteração fonética, visto que naquela época não havia um padrão de transliteração como existe hoje.

A Doutrina Secreta é uma tradução, com explicações da autora, de passagens do chamado Livro de Dzyan.  O Livro de Dzyan, por sua vez, “é o primeiro volume dos Comentários aos sete tomos secretos de Kiu-te e um glossário das obras exotéricas de mesmo nome”[1]. Alguns desses textos são relativamente recentes, enquanto alguns são antiquíssimos[2]. A primeira parte da divisão Gyut (rgyud-sde) é chamada Kalachakra e, segundo Blavatsky, é a “obra mais importante da divisão Gyut [(D)gyut](conhecimento místico) do Kanjur”.[3] Ainda segundo Reigle, as estâncias do Livro de Dzyan podem ser um trecho do texto-raiz do sistema Kalachakra, o Mulakalachakra Tantra[4], do qual é conhecido somente o famoso comentário Vimalaprabha. Reigle afirma que o ensinamento Kalachakra é conhecido como o “Ensinamento de Shambhala”. Segundo ele, “Shambhala é também considerada, na literatura teosófica, como a fonte do Ensinamento da Sabedoria Eterna, do qual é a Doutrina Secreta é uma parte direta”[5].

Outra obra de Blavatsky, A Voz do Silêncio, “faz parte da mesma série da qual se extraíram as ‘Estâncias’ do Livro de Dzyan, em que se baseia a Doutrina Secreta”[6]. Trata-se de uma tradução de 3 dos 90 textos que compõem o Livro dos Preceitos de Ouro. “Os preceitos originais são preservados nos templos anexos aos centros onde se acham estabelecidas as escolas “contemplativas”, ou Mahayana (Yogacharya)”[7].

Em relação à Escola Yogacharya, ou Yogacara[8], como se escreve atualmente, escola budista do séc. IV, cujos principais mestres são Arya Maitreya e Arya Asanga, Blavatsky afirmou a Alfred Sinnet ter utilizado  também um texto reservado de Maitreya: “Terminei um extenso capítulo introdutório, ou Preâmbulo, Prólogo, chamem-no como quiserem, apenas para mostrar ao leitor que o texto, tal qual se desenvolve, iniciando-se cada seção com uma página traduzida do Livro de Dzyan e do Livro Secreto do ‘Maitreya Buddha’ Champai chos Nga (em prosa, não os cinco livros em verso conhecidos, que são um subterfúgio) não é uma ficção”.[9] Esse texto, conforme acredita Reigle, pode ser um original reservado em prosa de um texto em verso conhecido como Ratnagotravibhanga, ou Uttaratantra Shastra.

Esse texto de Maitreya enfoca a existência de uma natureza última de todos os fenômenos, chamada por Maitreya de dhatu[10], ou elemento. Aquilo que Maitreya expõe como sendo o dhatu corresponde à primeira das três proposições fundamentais de A Doutrina Secreta: “Um princípio onipresente, eterno, sem limites e imutável, sobre o qual toda especulação é impossível, porque transcende o poder da concepção humana e porque somente o diminuiria qualquer expressão ou comparação humana”[11]. Esse princípio presente no homem é chamado de atman por Blavatsky.

Nas Cartas dos Mahatmas é dito: “…existe somente um elemento, e é impossível compreender nosso sistema antes que uma concepção correta dele esteja firmemente fixada em nossa mente. […] Esse elemento, portanto, para falar metafisicamente, é o único substrato ou causa permanente de todas as manifestações no universo fenomênico”.[12]

O dhatu, ou elemento presente em tudo e presente no homem, quando purificado dos obscurecimentos, é chamado Dharmakaya, e quando ainda não purificado é chamado Tathagata-garbha. O Maha-parinirvana-sutra, um dos chamados Sutras Tathagatagarbha, ou seja, textos atribuídos a Buddha sobre esse assunto, ensina: “O atman é o Tathagatagarbha. Todos os seres possuem uma Natureza-Buddha, isso é o que o atman é. Esse atman, desde o começo, está sempre coberto por inumeráveis contaminações: é por isto que os seres são incapazes de percebê-lo.”[13]

Contudo, essa visão de uma essência última do texto de Maitreya em todos os fenômenos não é a linha de ensinamento do budismo tradicional. O Budismo do sul da Índia, o Budismo hinayana, falava de uma essência diferente e própria a cada um dos múltiplos fenômenos do universo, que o Budismo do norte, mahayana, com a Escola Madhyamika, de Nagarjuna, e posteriormente com a Escola Prasangika-Madhyamaka, negou afirmando a falta de essência (anatman) de todos os fenômenos. Foi a Escola Jonang que resolveu a aparente contradição ao afirmar a falta de essência relativa de cada fenômeno e a existência de uma essência última única, comum a todos os fenômenos. Essa essência é permanente, estável, serena e eterna. Ela é vazia de tudo o que não seja ela mesma, ou seja, é vazia de outro (shentong ou gzhan stong). Um dos seus principais expoentes, Dolpopa (1292 -1361) sintetizou as duas visões de vazio expostas pela Escola Madhyamika, de Nagarjuna, e pela Escola Yogacara, de Maitreya e Asanga e denominou essa abordagem de Mahamadhyamika, ou Grande Madhyamika.

Os principais ensinamentos da Escola Jonang eram principalmente o Kalachakra e o vazio de outro, shentong, que se baseava eminentemente no Ratnagotravibhanga. A Escola começou com Yumo Mikyo Dorje (yu mo mib skyod rdo rje), no séc. XII, que recebeu ensinamentos de um mestre Kalachakra da Caxemira, Somanatha, que traduziu o comentário ao Kalachakra Vimalaprabha para o tibetano. Yumo expôs oralmente esses ensinamentos como um “Dharma secreto” (lkog pa’i chos)[14], que só foram escritos por Dolpopa.  No entanto, essa escola foi fechada no séc. XVII, e seus textos tornaram-se bem raros, sendo recuperados e divulgados no Ocidente a partir de 1992.

Concluindo, Blavatsky traz para o Ocidente ensinamentos budistas que se mantiveram reservados durante séculos. Ensinamentos semelhantes haviam sido anteriormente expostos pelas Escolas Yogacara e Jonang, contudo não representaram a corrente tradicional budista. Recentemente, esses ensinamentos vêm sendo traduzidos e retomados, e a obra de Blavatsky, ao mesmo tempo em pode ser compreendida de forma mais ampla, pode ajudar a compreender uma grande quantidade de ensinamentos budistas que foram redescobertos e adquiridos por universidades americanas e alemãs nas últimas décadas e estão disponíveis para serem traduzidos e estudados.

 [1] Blavatsky, H. P. A Doutrina Secreta, vol. VI. São Paulo. Ed. Pensamento. 1998. 10ª ed. p. 50.

[2] Idem.

[3] Blavatsky, H. P. The Secret Doctrine, vol. III. Chicago. The Theosophic Book Society. 1897. p. 388 (pág. 406 da digitalização), disponível em <http://blavatskyarchives.com/theosophypdfs/blavatsky_the_secret_doctrine_3rd_volume_1897.pdf>, p 388 do livro impresso e p. 406 da digitalização. Em português, A Doutrina Secreta, vol. VI. São Paulo. Ed. Pensamento. 1998. 10ª ed. p. 36, nota 8.

[4] Ver David e Nancy Reigle, “New Light on the Book of Dzyan”, in Blavatsky’s Secret Books. San Diego. Wizards Bookshelf. 1999. p. 25.

[5] Idem, p. 25.

[6] Blavatsky, H.P. A Voz do Silêncio, São Paulo. Ed. Pensamento. 1997. p.39.

[7] Blavatsky, H.P. A Voz do Silêncio, São Paulo. Ed. Pensamento. 1997. p.40.

[8] Não confundir com Escola Cittamatra.

[9] The Letters of h. P. Blavatsky to A. P. Sinnett, 1925, reprint, Pasadena: Theosophical University Press, 1973, p. 195, in David e Nancy Reigle, Blavatsky’s Secret Books,San Diego. Wizards Bookshelf. 1999. p. 85. Em português,  Blavatskty, H.P. A Doutrina Secreta, vol I. São Paulo. Ed. Pensamento 1999. p. 29.

[10] Traduzido diferentemente por “elemento”, “semente do Tathagata” ou “semente do Buddhado”; “essência de Buddha”; “natureza-Buddha”.

[11] Blavatsky, H.P. A Doutrina Secreta, vol. I. São Paulo. Ed. Pensamento. p. 81.

[12] The Mahatma Letters to A.P. Sinnet, 3ª ed. p. 63, in David e Nancy Reigle, in Blavatsky’s Secret Books. San Diego. Wizards Bookshelf. 1999. p. 89. Em português, Cartas dos Mahatmas para A.P. Sinnett, vol. I, Carta nº 67, Carta de K.H. para O.A.H. p. 286.

[13] Étienne Lamotte, The Teaching of Vimalakīrti, tradução inglesa de Sara Boin, Londres. The Pali Text Society, 1976, Introdução, p. lxxvii, in David e Nancy Reigle, in Blavatsky’s Secret Books. San Diego. Wizards Bookshelf. 1999. p. 114.

[14] “The Jo nang pas: A School of Buddhist Ontologists According to the Grub mthah shel gyi me long”, de D. S. Ruegg, Journal of the American Oriental Society, vol. 83, 1963, p. 83, in David e Nancy Reigle, Blavatsky’s Secret Books,San Diego. Wizards Bookshelf. 1999. p. 83.

 

O BUDDHADHARMA

O Buddhadharma é o ensinamento filosófico, ético e ióguico dado por Sidharta Gautama, e a tradição do Buddhadharma é a linhagem de mestres que se sucederam ao longo dos séculos transmitindo, comentando e esclarecendo seus ensinamentos, e preservando as práticas do tantra, a ioga budista.

Siddharta Gautama e as Quatro Nobres Verdades

Sidharta Gautama (643-563 a.C.), o Buddha, o Iluminado, também chamado de Shakyamuni, o sábio do clã dos Shakyas, nasceu em Lumbini, região do Nepal, que, na época pertencia à Índia. Em seu tempo, a filosofia indiana, que se fundamentava nos Vedas, estava em seu período clássico. Siddharta teve contato com as idéias da Nyaya, que trata da lógica e epistemologia, da reta cognição; da Samkhya, que trata da evolução cósmica a partir da interação do espírito com a substância cósmica (purusha e prakriti); praticou a ioga, que posteriormente será sistematizada por Patanjali e aponta a unidade entre o Ser Universal (Brahman) e o Ser no homem (Atman); teve contato com as ideias que posteriormente serão sistematizadas pela Vedanta, formada pelos Upanixades, textos filosóficos e metafísicos que enfatizam a identidade entre o Atman e Brahman, e a ética jainista de Mahavira.

A partir de tudo isso, formulou seu próprio ensinamento, fundamentado em Quatro Nobres Verdades[i]:

[ii]Duhkha – o sofrimento, as dores físicas e psicológicas, as aflições, o desespero, a insatisfação, a incompletude presentes na existência, a tristeza causada pela constatação da impermanência.

Avidya – a causa do sofrimento, a forma equivocada como o pensamento percebe o mundo e concebe a noção de eu, ilusão derivada do próprio pensamento, presença de conceitos equivocados na mente, a partir dos quais ela funciona e vê o mundo. Avidya é a presença de fatores mentais que impedem o surgimento da sabedoria, da compreensão e da clara visão, fatores mentais que não possibilitam a percepção pura, sem distorções. Avidya é um erro cognitivo que gera perturbações na mente (kleshas) e ações que geram experiências futuras da mesma natureza da intenção com que foram feitas (karma) e prende as pessoas em um ciclo interminável de nascimentos e renascimentos compulsórios (samsara).

Nirodha – a cessação do sofrimento, o nirvana, a cessação do equívoco da noção de um eu possuidor de uma essência própria.

Marga – senda que conduz à libertação do samsara. Esta senda é composta de oito pontos: reta compreensão; reto pensamento; reta fala; reta ação; reto meio de vida; reto esforço; reta atenção; reta meditação.

Inicialmente, Buddha ensina o caminho para a libertação do ciclo de renascimentos, e aquele que alcança esse estado é um liberto, um arhat.

Seus principais discípulos foram Mahakashyapa, que promoveu o I Concílio, após a morte de Buddha, reunindo os ensinamentos; Ananda, seu primo e auxiliar, que, após sua morte, foi designado responsável por guardar, preservar, proteger e conceder o Dharma; Katyana, que elaborou um método de interpretação dos ensinamentos; Shariputra, que sistematizou pontos mais elevados do Dharma, o que depois vai se tornar o Abhidharma; Maudgalyana, que tinha grande poder meditativo; Subhuti, que teve um grande entendimento de seu ensinamento. Outro discípulo importante foi Suchandra, que recebeu de Buddha as práticas meditativas profundas, o tantra budista.

A Mahasanghika e os Sutras Mahayana

Cem anos após a morte de Buddha, foi realizado o II Concílio, no qual foram reconhecidos os Sutras Mahayana. Um personagem chamado Mahadeva apontava para o fato de que o estado de um Buddha era a libertação final, e não o estado do chamado arhat. Introduz-se a ideia do bodhisattva, que busca a libertação não com a motivação egoísta de se libertar do próprio sofrimento, mas para auxiliar todos os seres a se libertarem. Começa-se a se falar de Maitreya, o próximo Buddha.

Nesse momento, Theravadas, que reconheciam como legítimos somente os primeiros sutras, separam-se do grupo maior (mahasangha).

A Escola Vaibashika e o Abhidharma

Vasumitra, Dharmatrata, Ghosaka, Buddhadeva promovem o III Concílio, em 260 a.C., em que revisam os sutras, corrigindo omissões, interpolações e deturpações. Essa é a época do rei Ashoka, que funda a universidade budista de Nalanda.

É estabelecido o tripitaka, ou as três cestas de ensinamentos: sutras, que são os ensinamentos filosóficos; vinaya, que trata da vida monástica; abhidharma, uma sistematização dos sutras em pontos específicos.

Os temas principais do Abhidharma são:

  1. Os skandhas dos seres (agregados psicofísicos), os dhatus (elementos) e os ayatanas (as consciências dos sentidos). Os skandhas são: rupa, a forma; vedana, as sensações; samjna, as discriminações; samskaras, as tendências; vijnana, a consciência, o pensamento. Os dhatus são: os órgãos dos sentidos, as consciências dos sentidos, os objetos de percepção.
  2. Os samskaras, as tendências que direcionam o fluxo mental.
  3. O karma, as ações realizadas, que geram experiências futuras.
  4. Os kleshas, as perturbações da mente.
  5. Os Bodhisattvas e as sendas de acumulação de ações meritórias; de esforço para eliminar os kleshas grosseiros; da visão intuitiva da natureza do eu e dos fenômenos, que liberta dos grilhões dos kleshas.
  6. A sabedoria originada pelo estudo do Dharma, pela reflexão e pela meditação que percebe as natureza do e dos fenômenos.
  7. Os samadhis, que são estados meditativos profundos.

Os Sutras Prajnaparamitas e o Mahayana

Entre os séculos I a.C. a I d.C., começam a surgir os Sutras Prajnaparamitas, que consolidam a senda Mahayana, o Grande Veículo, a senda dos Bodhisattvas, dos praticantes que desenvolveram a intenção altruísta de alcançar a Iluminação em benefício de todos, preservando o ensinamento e mantendo-o sempre disponível para que todos possam alcançar a libertação do sofrimento.

Esses textos enfocam as virtudes, chamadas paramitas: generosidade (dana), harmonia nas ações (shila), paciência (kshanti), perseverança (virya), plena atenção (dhyana), sabedoria (prajna). Há uma ênfase em prajna, a sabedoria que compreende o vazio de existência inerente do eu e dos fenômenos.

Dentre os Sutras Prajnaparamitas estão os conhecidos Sutra do Diamante e Sutra do Coração.

Nagarjuna e a Filosofia Madhyamika

Nagarjuna (c.75-c.165 d.C.) foi abade do centro de estudos budistas de Nalanda. Recebeu os Sutras Prajnaparamitas de 100 mil versos e os difundiu pela Índia, assim como com seu mestre, Saraha, também chamado Rahulabhadra. A partir de Nagarjuna, o Mahayana se consolida.

Em suas obras, Nagarjuna enfatizou o Caminho do Meio, que estabelece que o eu e os fenômenos não existem do modo como parecem existir, contudo não são inexistentes. Enfatizou a realidade relativa e a realidade última. Enfatizou também o fato de que nada surge a partir de si mesmo, mas a partir de causas e condições.

Escreveu Mulamadhyamikakarika, Setenta Versos sobre o Vazio; Carta a um Amigo; Guirlanda Preciosa (Ratnavali).

Seus principais seguidores foram Aryadeva, que escreveu Quatrocentos Versos, sobre os atingimentos ióguicos dos Bodhisattvas, e, posteriormente, Ashvagosha.

Os Sutras Tathagatagarbha

No séc. III começam a surgir os Sutras Tathagatagarbha, como o Tathagatagarbha Sutra, o Sutra da Rainha Sri Mala Devi, Daranishvara Sutra, que tratam da semente de Buddha, ou a natureza-Buddha, ou o dharmadhatu, presente em tudo o que existe. Nenhum fenômeno possui uma essência própria, mas todos possuem uma única essência, comum, o dharmadhatu, o elemento imperecível, que é profunda paz, plena sabedoria e plena compaixão.

Nesta época, surgiu o texto Samdhinirmochana, composto de diálogos de Buddha com seus discípulos sobre os obstáculos que impedem a Iluminação, que é classificado como um dos Sutras Mahayana.

Asanga e a Escola Yogacara

A Escola Yogacara enfatiza a prática da ioga. Asanga (309-389), seu fundador faz um retiro de 12 anos e traz cinco tratados de Maitreya, que comenta os Sutras Mahayana no Ornamento dos Sutras Mahayana (Mahayanasutralamkara); comenta os Sutras Prajnaparamitas no Ornamento da Clara Visão (Abhisamayalamkara); comenta o vazio e os extremos de se afirmar os fenômenos como autoexistentes ou negar-lhes a existência, retomando a Escola Madhyamika, na Distinção entre o Meio e os Extremos (Madhyanta Vibhanga); comenta os fenômenos e a natureza última em Dharma e Dharmata; comenta os Sutras Tathagatagarbha, no Ratnagotravibhanga, ou Uttaratantrashastra.

Asanga escreveu Yogacarabhumi, que trata dos níveis de meditação e dos níveis dos Bodhisattvas; texto sobre o Abhidharma (Abhidharmasamuccaya), visão geral do Mahayana (Mahayanasamgraha); comentário ao Ratnagotravibhanga.

Seus irmãos Vasubandhu (   -407) e Sthiramati também foram muito importantes para essa escola. Vasubandhu também escreveu sobre o abhidharma em Abhidharmakosha, além de tratados sobre os agregados (Pancaskandhaprakarana), sobre o karma (Karmasiddhiprakarana), sobre as três naturezas dos fenômenos (Trisvabhavanirdesha), Tratado em Trinta Estrofes (Trimshika), entre outros. Sthiramati comentou os tratados de Maitreya e de Vasubandhu.

A Escola Yogacara não é a Escola Cittamatra, ou Vijnanavada, que defende que os fenômenos só existem mentalmente.

Para saber mais, A Escola Yogacara.

Dignaga e Dharmakirti e os Pramanas

Dignaga (480-540) foi discípulo de Vimuktisena, um dos continuadores da Escola Yogacara e estabeleceu a epistemologia budista. Também influenciado pela Escola védica Nyaya, procurou detalhar o modo como a cognição se dá e os fatores mentais envolvidos e também apontar os meios para a reta percepção (pramana), o reto conhecimento, a cognição válida.

Escreveu Pramanasamuccaya e Abhidharmakoshamarmadhipa, um comentário ao Abhidharmakosha, de Vasubandhu, entre outros. Seus principais continuadores são Ishvarasena e, posteriormente, Dharmakirti (530-600), que escreveu Pramanavartika.

Buddhapalita e as Prasangas

Buddhapalita (séc. V) estabelece um método para abordar o tema do vazio de existência inerente do eu e dos fenômenos que consiste em considerar as consequências (prasanga) das afirmações de um oponente até que se chegue ao absurdo, para mostrar a falha do raciocínio.

Bhavaviveka e a Filosofia Svatantrika

Bhavya, ou Bhavaviveka (c.450-c.520), foi o fundador da Escola Svatantrika, que admitia o uso de inferências para abordar o vazio de existência inerente do eu e dos fenômenos (shunya). Utilizava instrumentos lógicos semelhantes à da Escola védica Nyaya.

Svatantra é um método que analisa inferencialmente uma afirmação relativa ao vazio, sem considerar as afirmações do oponente. Bhavaviveka procurava refutar as ideias da corrente de pensamento cittamatra (não confundir com yogacara), que afirmava que os fenômenos existem apenas mentalmente.

Suas principais obras são Prajnapradipa, Madhyamakakrdayakarika e Tarkajvala, e seus principais continuadores são Jnanagarbha, Shantarakshita, Kamalashila e Haribhadra.

Chandrakirti e a Escola Prasangika

Chandrakirti (c.485-c.555) estudou com Bhavya quando jovem, mas retoma o método da consequência (prasanga), de Buddhapalita. A partir de sua atuação, a filosofia de Nagarjuna passa a ser chamada Madhyamika-Prasangika. Escreveu Introdução ao Caminho do Meio (Madhyamakavatara); Prasannapada, comentário ao Madhyamikakarika, de Nagarjuna; e um comentário aos Quatrocentos Versos, de Aryadeva. Um de seus principais discípulos foi Jnanagarbha.

As Escolas Prasangika e Svatantrika são dois métodos diferentes para abordar shunya, tema central da Escola Madhyamika.

Shantideva e o Lojong

Shantideva (680-755) estudou na universidade budista de Nalanda e escreveu Um Guia para o Modo de Vida dos Bodhisattvas (Bodhicaryavatara), com o qual apresenta Lojong, um modo de transformação da mente, com o desenvolvimento de bodhicitta, a intenção altruísta de alcançar a Iluminação em benefício de todos os seres, e das virtudes que compõem o caminho dos Bodhisattvas. Shantideva propõe a troca de pensamentos de egoísmo e avareza por pensamentos generosos; pensamentos de inveja por pensamentos harmônicos; pensamentos de rancor e descontentamento por pensamentos pacientes; pensamentos de desânimo por pensamentos perseverantes; pensamentos distraídos por foco na meditação e fora dela; pensamentos carregados de visão errônea pela sabedoria que compreende a falta de existência inerente do eu e dos fenômenos. Propõe que o praticante troque suas prioridades egocentradas pelo bem-estar de todos.

O Buddhadharma no Tibete

Shantarakshita e Kamalashila

No século VIII, Shantarakshita foi convidado pelo rei Tritsong-de-tsen a ensinar o Dharma no Tibete. É fundado então o primeiro mosteiro, Samye, onde foi criado um núcleo de traduções. Seu discípulo Kamalashila (725-798) escreveu Os Estágios da Meditação (Bhavanakrama), no qual explica que o caminho para a Iluminação é gradativo e que não existe uma Iluminação súbita, como alguns personagens que também haviam sido convidados a ensinar no Tibete estavam defendendo. Além disso, Kamalashila chama a atenção para o fato de que não basta aquietar a mente (shamata), é preciso realizar o segundo passo, que é a meditação analítica (vipasyana) que desfaz o mecanismo de avidya presente no fluxo mental. Essa obra é o início do que mais tarde será conhecido como textos LamRim, que apresentam tópicos sistematizados de uma senda graduada para a libertação.

Outras escolas desenvolveram-se no Tibete, contudo, por apresentarem divergências em alguns pontos filosóficos e tântricos, não serão abordadas neste site.

Tilopa, Naropa, Serlingpa e Rinchen Zangpo

Tilopa, também chamado Chilupa ou Kalapa (930-1000), divulga textos da tradição Kalachakra e outros tantras, dando grande impulso ao Vajrayana, veículo das práticas meditativas. Seus principais discípulos foram Naropa, Serlingpa e Rinchen Zangpo. Naropa (958-1041) divulga as chamadas Seis Yogas de Naropa, recebidas de Tilopa, e divulga um capítulo do tantra-raiz Kalachakra, comentando-o no Sekoddeshatika. Serlinpa (943-1005), também chamado Pindo Acharya, Dharmarakshita, Vagisvarakirti ou Avadhutipa, foi discípulo de Tilopa e de Naropa. Serlingpa ensinava Nagarjuna, Asanga e Shantideva em Java e foi transmitiu ensinamentos lojong a Atisha, que foi importante para a transferência do Dharma da Índia para o Tibete. Rinchen Zanpo (958-1055) foi um tibetano que criou um grupo de discípulos e os levou para a Índia para aprenderem o sânscrito e promoverem um intenso trabalho de tradução no Tibete. Fundou o mosteiro de Toling, no qual Tilopa e Naropa concederam ensinamentos.

A Escola Kadampa e o Lamrim

Atisha (982-1054), após ter aprendido com seu mestre Serlingpa, dirige-se para o Tibete a convite do rei Yeshe Od e lá, junto com Abhayakirti, Dromtonpa e outros estabelecem um núcleo de traduções e de difusão do Dharma no mosteiro de Reting. Surge a Escola Kadampa, cujo currículo foi elaborado por seu discípulo Dromtonpa.

Com a Escola Kadampa surgem os textos LamRim, a senda graduada para a Iluminação, que trata de tópicos como a importância do ensinamento e do mestre, a  impermanência, o sofrimento, a originação dependente, bodhicitta, as paramitas, a visão do vazio, para serem estudados, refletidos e meditados. Estudavam os textos clássicos da Escola Madhyamika, da Escola Yogacara, os pramanas. Atisha, Potowa, Langri Thangpa, Sharawa, Chekawa, Thogsmed Zangpo escreveram textos lojong, de transformação da mente, dando continuidade a essa abordagem criada por Shantideva.

A Escola Sakya

A Escola Sakya estabeleceu-se a partir de Sanchen Kunga, que recebeu ensinamentos de personagens anteriores, como KonKonchog e Dromi. A Escola Sakya teve uma atuação semelhante à da Kadampa, traduzindo e revisando textos, produzindo comentários. A ênfase da escola era mais tântrica, principalmente em Hevajra, prática ligada à compaixão. Outros personagens importantes são Drakpa Gyaltsen e seu sobrinho Sakya Pandit e Yonten Gyatso.

Um discípulo de Yonten Gyatso chamado Buston (1290-1364) atuou no mosteiro Zhalu. Organizou, revisou e editou o Tanjur, o conjunto de comentários aos ensinamentos de Buddha. Além disso, escreveu A Vida de Shakyamuni,  História do Buddhismo na Índia e no Tibete e História do Tantra, comentou o obras de Maitreya, Asanga, Dharmakirti, Haribhadra, Shantideva. Reuniu as linhagens Dro e Ra do Kalachakra.

Dolpopa e a Escola Jonang

Dolpopa era da região de Dolpo, no Nepal. Discípulo de Yonten Gyatso, recebeu ensinamentos sobre os Sutras Tathagatagarbha e sobre a Escola Yogacara, principalmente o Uttaratantra, ou Ratnagotravibhanga, que tratam da natureza-buddha presente em todos os seres. Recebeu de seu mestre e de Buston instruções sobre o Kalachakra. Assumiu a direção do mosteiro Jonang e procurou unir as filosofias das Escolas Madhyamika e Yogacara com  a visão Shen Tong, o Vazio de Outro, a essência última de todas as coisas, que não é vazia de existência inerente.

Escreveu O Quarto Concílio, o Dharma da Montanha.

Outro expoente da Escola Jonang, Bodong Namgyal, foi um dos mestres do I Dalai Lama, Gedun Drub.

Para saber mais Dolpopa e o Núcleo Jonang

Tsongkhapa e a Escola Gelugpa

Tsongkhapa, ou Lobsang Drakpa, discípulo do Sakya Rendawa, Tsongkhapa fundou a Escola Gelugpa, dos gorros amarelos.

Estudou os Sutras Prajnaparamitas, as Escolas Madhyamika, Yogacara, os pramanas, a filosofia prasanga-madhyamika de Budhapalita e Chandrakirti e transmitiu-os a seus discípulos. Escreveu três textos do tipo LamRim: um curto, um médio e um longo. Enfatizou os três principais aspectos da senda: renúncia, bodhicitta e prajna, a sabedoria que percebe a falta de existência inerente do eu e dos fenômenos.

Deu grande impulso ao tantra.

Seus principais discípulos foram Khedrub Palzangpo, Gyaltsab Rinchen, Sherab Senge, Gedun Drub, que posteriormente foi considerado o I Dalai Lama.

Durante sua vida foram construídos os mosteiros de Ganden, Sera e Drepung. Khedrub, Sherab Senge e Gedun Drub reativaram um mosteiro chamado Ensa, e Gedun Drub fundou o mosteiro de Tashi Lhunpo, no sul do Tibete. Esses locais serviram de base para a linhagem dos Panchen Lamas, que preservavam os ensinamentos mais reservados e os tantras. Ensapa e seu discípulo Sangye Yeshe.

A Linhagem dos Panchen Lamas, a Linhagem Ensa

Nos mosteiros Ensa e Tashi Lhunpo atuaram os preservadores dos colégios tântricos, principalmente da linhagem Kalachakra.

O I, II, III e IV Panchen Lamas foram bastante atuantes. O I Panchen Lama, Lobsang Choskyi Gyaltsen (1570-1662) escreveu 108 textos, dentre eles Caminho para a Bem-Aventurança, O Grande Selo do Vazio, ligado à tradição Mahamudra. O II Panchen Lama, com o VII Dalai Lama, editou uma edição revisada do Kanjur (ensinamentos de Buddha) e do Tanjur (os comentários), a edição de Narthang. O VII Dalai Lama (c.1690-c.1758), considerado o mais nobre dos Dalai Lamas, atuou muito proximamente do segundo Panchen Lama e instruiu o terceiro.O III Panchen Lama escreveu Caminho para Shambala. A partir do IV Panchen Lama, começa a haver problemas a direção política da tradição, o que causa um recolhimento. A partir do V Panchen Lama, começa a haver nomeações e intervenções chinesas.

Blavatsky e Tashi Lhunpo

Helena Blavatsky esteve no Tibete algumas vezes, inclusive no mosteiro Tashi Lhunpo, em Xigatse, onde teve contato essa tradição. Blavatsky decorou 39 textos do chamado Livro dos Preceitos de Ouro, dos quais traduz três textos do Buddha Maitreya, publicos com o título A Voz do Silêncio. Além disso, como defende o estudioso da teosofia e do budismo David Reagle, em A Doutrina Secreta, traduz pela primeira vez em uma língua ocidental trechos do Mulakalachakratantra, texto que, exceto o capítulo que trata das iniciações kalachakra, está fora de circulação.

A Escola Gelugpa nos Séculos XX e XXI

Atuaram preservando o Dharma, Kangsar Dorje Chang, seus discípulos Lamas Pabongka e Trijang, cujos discípulos foram Ling, Serkong, Zong, Dhargyey, Jamiyang, Rabten, entre outros. Apos a invasão do Tibete pela China, os mosteiros se transferiram para a Índia. Atualmente, Pabongka tulku (renascido) atua no Nepal; Trijang tulku atua nos Estados Unidos, e Rabten tulku atua na Suíça.

David Reagle afirma que, com a invasão pela China, muitos textos foram adquiridos por universidades e centros de estudos budistas por universidades americanas e alemãs e que há muito material a ser traduzido nessa transferência do Buddhadharma do Tibete para o Ocidente.

Referências bibliográficas:

Alberto Brum – A Libertação do Sofrimento no Budismo Tibetano Gelugpa, Ed. Teosófica.

Buston – The History of Buddhism in India and Tibet, ed. Sri Satguru Publications.

Taranatha – History of Buddhism in India, ed. Motilal.

George Roerich – Blue Annals, ed. Motilal.

“Lama Dolpopa e a Base para o Budismo Shentong”, em http://budismoshentong.blogspot.com.br/p/lama-dolpopa-e-base-para-o-budismo.html, acessado em maio de 2017.

Nyaponika Thera e Hellmuth Hecker – Great Disciples of the Buddha, ed. Wisdom.

[i] Presentes no Dharmachakra Sutra.

[ii] Esta explicação deste tópico encontra-se presente no livro A Libertação do Sofrimento no Budismo Tibetano Gelugpa, de Alberto Brum.

 

 A ESCOLA YOGACARA

Breve (em construção)

 A ESCOLA JONANG

Dolpopa e o Núcleo Jonang

O mosteiro Jonangpa, na região de Jonang, no sudoeste do Tibete, tornou-se um importante núcleo de estudo do sânscrito e de retraduções de textos indianos, principalmente textos vinculados ao tantra Kalachakra e à escola indiana Yogacara.

Inicialmente vinculado à escola Sakya, o mosteiro Jonangpa passa a se diferenciar da primeira e torna-se uma nova escola a partir de seu terceiro abade, Yontan Gyatso (1260-1327) ao promover um currículo que enfatizava os tratados de Maitreya e os sutras sobre a Natureza-Buddha (tathagatagarbha). A escola ganha notoriedade e divulgação entre os meios monásticos budistas com o seu quarto abade, Dolpopa Sherab Gyaltsen (1292-1361).

Em 1325, Yontan Gyatso, solicitou a Dolpopa que se tornasse o seu “herdeiro do Dharma” e aceitasse o cargo de abade do mosteiro Jonang, transformando-se no quarto abade Jonangpa a partir do ano de 1326. Lama Dolpopa reúne em torno de si um grupo de yogues estudiosos e tradutores considerados excepcionais, tais como Mati Panchen Lodro Gyaltsen (1294-1376), Lotsawa Lodro Pal (1299-1354) e Chogle Namgyal (1306-86). Esse grupo torna-se responsável pela retradução comentada de diversos textos importantes do budismo Mahayana indiano que servirão de base para os ensinamentos que serão chamados de “a visão Shentong”.

Dolpopa e seu núcleo de tradutores e comentadores propõem o que ele chama de “Vazio de outro” (Shentong), enfatizando e se baseando nos ensinamentos dos textos vinculados ao tantra Kalachakra, à escola Yogacara e aos Sutras Tathagatagarbha.

Lotsawa Lodro Pal e Mati Panchen Lodro Gyaltsen, sob os auspícios de Dolpopa, traduziram o tantra Kalachakra e o seu principal comentário, o Vimalaprabha.

Dolpopa e suas obras

Dolpopa nasceu na região do Dolpo, parte do atual Nepal, em 1292. Conforme a biografia fornecida por Cyrus Stearns (2010), aos 17 anos, ele foge da casa dos pais em direção ao Tibete em busca de ensinamentos. É ordenado aos 22 anos de idade, após se graduar no estudo dos Sutras Prajnaparamita e da cosmologia budista. Grande parte de seu aprendizado deu-se no mosteiro Sakya. No ano de 1321, já aos 29 anos de idade, visita pela primeira vez o mosteiro na região de Jonang, área de retiro e meditação, na província de Tsang, sudoeste do Tibete.

Dolpopa escreveu muitos tratados curtos, nem todos traduzidos para línguas ocidentais ainda. Três tratados longos são considerados os seus principais trabalhos e já foram traduzidos para o inglês: The General Commentary on the Doctrine (bstan pa spyi ‘grel), Mountain Doctrine: An Ocean of Definitive Meaning (ri chos nges rgya mtsho), ambos concluídos provavelmente até 1333, e o Fourth Council (bka’ bsdu bzhi pa) com o seu próprio comentário ao texto (rang ‘grel) e o sumário (bsdus don), elaborados nos últimos anos de sua vida.

Buston Rinchen e o mosteiro Zhalu

Dolpopa também atuou junto de Buston Rinchen (1290-1364), abade do mosteiro Zhalu e responsável pela sistematização do cânone budista, organizando o Kanjur (sutras, tantras, código vinaya) e Tanjur (textos abhidharma, comentários e tratados), deixando de lado os textos que não tinham uma fonte idônea.

 Essa mesma sistematização de Buston seguida pela tradição Jonang e Zhalu é posteriormente adotada pela escola Gelugpa, de Tsongkhapa.

A Jonang pós-Dolpopa

Após o tempo de Dolpopa, houve outros personagens importantes na tradição Jonang, como Bodong Namgyal, no século XV, um dos gurus do gelugpa Gedun Drub (o I Dalai Lama), e Jestun Taranatha, no século XVII, autor de importantes obras sobre a história do budismo, a visão Shentong, a linhagem de Tara e um texto lamrim (a senda graduada).

Taranatha (1575-1634) foi o último abade do mosteiro Jonang. No século XVII, a escola foi fechada pelo V Dalai Lama e deixou de existir institucionalmente. Vários textos Jonang, como as obras de Dolpopa e outros, desapareceram, sendo que alguns desses textos foram redescobertos a partir do final do século XX.

Referências:

STEARNS, Cyrus. The Buddha from Dölpo. Ithaca:Snow Lion, 2010.

  

A TRADIÇÃO KALACHAKRA

A tradição Kalachakra é a preservadora de um sistema tântrico ensinado por Buddha. A palavra sânscrita “tantra” significa “método”. Assim, o tantra budista mahayana é um método, composto de práticas de meditação, que visa a conduzir o praticante ao estado de um Buddha em benefício de todos os seres. O Tantra de Kalachakra, ou Tantra do Ciclo do Tempo, trata de aspectos macrocósmicos e microcósmicos da existência cíclica e apresenta uma possibilidade de purificação, de modo a se manifestarem a sabedoria que percebe o vazio e a bem-aventurança compassiva.

Esse sistema tântrico foi transmitido na Índia por Buddha Shakyamuni a Suchandra, Rei de Shambala. Suchandra registrou esses ensinamentos no chamado Kalachakramulatantra, ou Tantra-Raiz do Kalachakra [1], e escreveu um comentário. Contudo este texto está inacessível, com exceção do capítulo que trata das iniciações, chamado Sekoddesha. Suchandra iniciou uma linhagem de transmissores, dentre quais o sétimo, Manju Yashas, escreveu uma versão resumida, chamada Laghukalachakratantraraja, ou Tantra de Kalachakra Resumido. Seu principal discípulo, Pundarika, escreveu um importante comentário a esse texto, chamado Vimalaprabha, ou A Luz Imaculada. Manju Yashas e Pundarika são os primeiros da linhagem dos chamados kalkins ou kulikas.

O Tantra de Kalachakra Resumido é composto de três áreas principais: o Kalachakra externo, o Kalachakra interno e o Kalachakra alternativo. No total, há cinco livros, que tratam 1) do macrocosmo; 2) do microcosmo; 3) das iniciações; 4) dos estágios de geração e consumação; 5) do resultado da senda, ou seja, jnana, a sabedoria primordial.

O Livro I trata do Kalachakra Externo, do ciclo do tempo medido pelos dias, meses e anos, que têm como referência as órbitas dos planetas, da lua e do sol pelas 12 constelações do zodíaco. Ele trata da realidade externa convencional.

Este livro apresenta uma descrição do sistema solar e do planeta; de sua formação e dissolução; e de seus habitantes.

O Livro II trata do Kalachakra Interno, da fisiologia sutil, das energias que circulam por diferentes canais e pelos centros de energia (lótus sutis ou chakras).

O tempo é medido pela respiração inalação e exalação e pela circulação da energia de vida, ou prana, no sistema fisiológico sutil dos indivíduos, descrito como um zodíaco do microcosmo. Os ciclos dos movimentos do prana pelos centros de energia (chakras), que compõem o círculo do tempo interno, são descritos em correspondência com os movimentos celestes.

O Kalachakra Externo e o Interno apresentam as bases da existência cíclica e o modo contaminado em que elas estão estabelecidas.

O Kalachakra Alternativo apresenta as práticas meditativas. Trata-se de um sistema de prática de ioga avançada. Para se ingressar plenamente na senda tântrica, antes é preciso desenvolver a renúncia; bodhicitta, a intenção de buscar a Iluminação pelo bem de todos os seres; e prajna, a percepção intuitiva de que todos os fenômenos são vazios de existência inerente.

O Livro III é o Livro das Iniciações. Inicialmente, há sete iniciações, que são como o crescimento de uma criança:

  1. Iniciação da água – representa a purificação do corpo, a fala e a mente dos praticantes. Corresponde ao primeiro banho de uma criança.
  2. Iniciação da coroa – representa a purificação dos cinco agregados (skandhas) e age como uma causa para o surgimento da  ushnisha (protusão da coroa de um Buddha), que ocorre quando alguém se torna um Buddha. Corresponde ao primeiro corte de cabelo.
  3. Iniciação da faixa de seda – representa a purificação das energias sutis. Equivale a colocar ornamentos na criança, como brincos.
  4. Iniciação do Vajra e do Sino representa a purificação dos canais de energia.  O vajra e o sino estão relacionados com a mente e a fala de Buddha e com prajna e a bem-aventurança. Receber esta iniciação coloca marcas no continuum mental do praticante, para gerar esse resultado. Corresponde ao riso da criança.
  5. Iniciação da Conduta – representa a purificação das faculdades dos sentidos. É análoga a colocar um anel no dedo da criança.
  6. Iniciação do Nome – representa a purificação das ações. É análoga a dar um nome à criança.
  7. Iniciação da Permissão – Ao receber as sete iniciações, o praticante é autorizado a praticar o estágio de geração.

As Quatro Iniciações Superiores são chamadas Iniciação do Vaso; Iniciação Secreta; Iniciação da Sabedoria; Iniciação da Palavra. O praticante é autorizado a praticar o estágio de consumação.

As Quatro Iniciações mais Elevadas, que permitem a alguém realizar as atividades de um mestre vajra, ou seja, explanar e dar iniciações do tantra, recebem os mesmos nomes das Iniciações Superiores: Iniciação do Vaso; Iniciação Secreta; Iniciação da Sabedoria; Iniciação da Palavra.

O Livro IV trata das práticas dos estágios de geração e de consumação. O estágio de geração é assim chamado porque o praticante gera o Palácio de Kalachakra e a si mesmo como a deidade Kalachakra. O praticante deve assumir o Buddha que irá se tornar, visualizando-se como a deidade Kalachakra. O principal objetivo é dispersar o modo de apreensão comum dos fenômenos, que são percebidos como existências separadas. O Palácio de Kalachakra é visto como uma manifestação da Mente de Buddha, e suas várias partes são manifestações dos aspectos da Iluminação.

No estágio de geração é essencial a Ioga Focada no Mestre (Guru Yoga). O mestre representa o Buddha; o ensinamento de Buddha, o Dharma; e toda a linhagem que sustentou esse ensinamento e o preservou no mundo.

No estágio de consumação, o praticante está preparado para lidar diretamente com as energias presentes em seu corpo, a fim de purificá-las dos obscurecimentos que dão sustentação à consciência contaminada que o mantém compulsoriamente no ciclo de existências, o samsara.

O Livro V, trata do resultado da prática do Tantra de Kalachakra, ou seja, de jnana. Jnana é a sabedoria inata nos seres com a qual se percebe a natureza de vazio de existência inerente dos fenômenos. Jnana é a sabedoria que vai além da visão da dualidade entre o sujeito que percebe e o objeto percebido e intui a unidade que está por trás de tudo o que existe. Ela é o antídoto para o sofrimento, pois destrói avidya, a ilusão de separatividade.

Além de jnana pode-se usar o termo maitri, ou amor de Buddha. O amor de Buddha, Maitri, é a contraparte da profunda consciência de ser uno com tudo o que existe.

Neste livro há um capítulo que trata da mandala do Tantra de Kalachakra. A mandala Kalachakra representa um processo reorganizador do sistema de energias dos seres, de modo a manifestar o corpo, a fala e a mente de Buddha. O cosmos, o corpo humano e a mandala do Kalachakra são o aspecto externo, interno e alternativo, ou sublimado, de uma única realidade. Essas são as três moradas do Buddha Kalachakra.

Este ensinamento foi preservado reservadamente e divulgado no séc. X, na Índia, por Tilopa e seus discípulos, dentre eles, Pindo Acharya, também chamado de Serlingpa e de Avadhudipa, e Naropa. Naropa escreveu um comentário à única parte do Tantra-Raiz que está acessível, o Sekoddesha. Foram seus discípulos, dentre outros, Somanatha, que levou essa tradição para o Tibete, desenvolvendo um trabalho de tradução com Dro Lotsawa. Essa tradição também foi transmitida a Rwa Chorab. As linhagens Dro e Rwa são as principais linhas de transmissão, depois fundidas por Buton, no séc. XIV.

A linhagem de Buton chegou a Tsongkhapa, e essa tradição foi preservada reservadamente pela Escola Gelugpa. Seus discípulos imediatos Khedrub Palzangpo, Gyaltsab Rinchen e Gedun Drub, o I Dalai Lama estudaram, praticaram, ensinaram e escreveram sobre o Kalachakra.

Muitos Dalai Lamas, como o I, o II, o III e o VII, e Panchen Lamas, como o I, o II e o III e o VI preservaram esta tradição. O III Panchen Lama escreveu Guia para Shambala.

O Tantra de Kalachakra também foi preservado pelas Escolas Sakya e Jonang. Inicialmente, um nome importante da escola Jonang foi Yumo Mikyo Dorje. Mas tarde, Dolpopa e seus discípulos Machi Panchen e Lodro Lotsawa; Bodong Namgyal, importante guru Jonang do I Dalai Lama, e, posteriormente, Taranatha, escreveram amplamente sobre essa tradição.

Kangsar Dorje Chang, mestre do tutor do XIV Dalai Lama, o Dalai Lama atual: Kyabje Ling Dorje Chang, que a transmitiu, entre outros, a Geshe Ngawang Dharghyey.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DHARGYEY, Gueshe. Kalachakra tantra. Nova Delhi, LTWA, 1985.

GYATSO, Khedrup Norsang. Ornament of stainless light. Boston, Wisdom, 2004.

GYATSO, T., o XIV Dalai Lama. As long as space endures. Ítaca, Snow Lion, 2009.

________ El tantra de kalachakra, rito de iniciación. Novelda, Wisdom, 1994.

LAMRIMPA, G. Trancending time. Boston, Wisdom, 1999.

MULLIN, G. The practice of kalachakra. Ítaca, Snow Lion, 1991.

NEWMAN, J. The wheel of time. Ítaca, Snow Lion, 1985.

ROERICH, G. N. The blue annals. Nova Delhi, Motilal Barnasidass, 1996.

STRIL-REVER, S. Tantra de kalachakra. Paris, Desclée de Brouwer, 2000.

_________ Traité du mandala. Paris, Desclée de Brouwer, 2003.

WALLACE, V.A. The inner kalachakratantra. Nova York, Oxford University Press, 2001.

HENNING, E. Kalachakra. Disponível em < http://www.kalacakra.org/history/khistory.htm>. Acessado em dezembro de 2016.

Internationl Kalachakra Network. Disponível em <http://kalachakranet.org/index.html>. Acessado em dezembro de 2016.

[1] O estudioso da teosofia e da tradição budista David Reigle defende que as Estâncias de Dzyan, do Livro de Kiu-te, traduzidas por Helena Blavatsky em A Doutrina Secreta, são trechos desse texto.